Vencedor do Oscar, o melhor filme de ação dos últimos 5 anos acaba de estrear na Netflix Divulgação / Warner Bros.

Vencedor do Oscar, o melhor filme de ação dos últimos 5 anos acaba de estrear na Netflix

Poucos cineastas contemporâneos enfrentam com tanta consistência o conflito entre vontade humana e variáveis incontroláveis quanto Christopher Nolan. Em “Tenet” (2020), esse embate sai do plano do tema e vira mecanismo narrativo. O que começa na arquitetura claustrofóbica de um teatro em Kiev evolui para um desenho de forças no qual causa e efeito trocam lugares, mantendo ritmo e clareza operacional. Não há solenidade teórica; há experiência concreta: portas que se abrem para trás, vidros que se recompõem, impactos que precedem os gestos. O filme não pede crença; cobra atenção.

Chamar o herói de “Protagonista” não é excentricidade. É uma decisão de engenharia dramática que reduz ruído biográfico e concentra a experiência no presente. John David Washington interpreta essa superfície de atrito com disciplina física e economia expressiva. O corpo reage, a mente calcula, a fala evita excesso de subtexto. Em espaços sujos ou salas clínicas, a vulnerabilidade aparece sem melodrama; a narrativa prefere o pulso acelerado à vitimização. A pergunta sobre o “lado” perde interesse quando a própria noção de lado se torna frágil diante de um tabuleiro que muda de direção.

A inflexão conceitual vem no encontro com a cientista vivida por Clémence Poésy. A cena é curta, funcional e suficiente. Uma bala retorna à arma; a palavra “inversão” ganha corpo e consequência. Não há palestra; há léxico mínimo para que a audiência acompanhe a operação. É a ética usual de Nolan: clareza nasce do choque entre forma e conteúdo, não de notas de rodapé. O espectador não recebe tese, recebe parâmetros: entender será verbos de ver, ouvir, comparar, relacionar.

A partir daí, “Tenet” amplia a escala sem quebrar a gramática que o sustenta. O assalto ao freeport de Oslo, com um 747 atravessando a cerca como massa real em colisão real, confirma o credo do diretor em efeitos práticos. A fotografia de Hoyte van Hoytema mantém nitidez e volume, evitando fetichizar a técnica. A câmera dá ao olho humano margens justas de decodificação, mesmo quando o sentido pleno depende de laterais temporais reveladas adiante. Na trilha de Ludwig Göransson, o pulso percussivo substitui o conforto melódico e instala urgência que organiza a percepção.

A presença de Neil, interpretado por Robert Pattinson, age como contrapeso. Ele parece saber mais do que verbaliza e dispõe esse excedente com gentileza calculada. Em um gênero acostumado a alianças ruidosas, sua lealdade silenciosa é decisão de tom e de caráter. As conversas com o Protagonista abrem brechas de leveza sem desmontar a tensão. O humor é discreto; serve como sinal de humanidade em um mundo onde as setas do tempo se confundem. A amizade, aqui, funciona como vetor intuitivo quando o mapa lógico se embaralha.

No polo oposto, Andrei Sator, de Kenneth Branagh, recusa exotismo. O vilão age menos pela ostentação do dano e mais pela imposição de ritmo alheio. O poder dele é fazer os outros respirarem no seu compasso. Ao seu lado, Elizabeth Debicki constrói Kat como figura alta, cansada e precisa. Não há vitimismo performado; há sobrevivência. O casamento deles não é ornamento dramático: organiza o tema da dominação temporal como extensão de dominação afetiva. Kat aprende a romper o relógio do outro antes de encontrar o seu. Debicki trabalha microgestos: a mão que hesita no corrimão, o fio de cabelo colado à têmpora no convés, sinais breves que traduzem uma vida inteira em poucos segundos de tela.

A perseguição na rodovia é a síntese visual do projeto. Carros avançam e recuam na mesma faixa, um veículo gira e “desgira”, o para-brisa gela quando deveria queimar. A decupagem recusa pirotecnia sem custo; a montagem organiza causas e efeitos mesmo quando eles se comportam como ondas que recuam. Nolan exibe as costuras porque confia na inteligência do olhar; neste caso, ver a costura fortalece a experiência. Há honestidade de maquinista na forma como planos se encadeiam a serviço de legibilidade.

Em “Tenet”, a matemática vira afeto. Escolhas formais carregam implicações morais. Quem controla direção do fluxo assume responsabilidade que excede o indivíduo. O antagonista é maior não por crueldade, mas por ambição de reescrever entropia como cláusula privada. A herança de “A Origem” aparece sem citação direta: outra vez homens tentam desenhar realidade com instrumentos de precisão e, nesse gesto, expõem a fragilidade de qualquer projeto de controle total. Se “A Origem” operava na plasticidade do sonho, “Tenet” investiga a plasticidade do tempo e encontra, no mesmo movimento, o limite humano.

O filme propõe um apocalipse de outra ordem. Não o fim pela hecatombe, mas pela soma de ajustes finos, silenciosos, executados em salas insonorizadas e terceirizados a operadores que ninguém enxerga. A catástrofe vira método. O suspense nasce dessa percepção. O Protagonista não enfrenta um monstro, enfrenta um modelo de mundo: engrenagem que lubrifica monstros. A ameaça torna-se quotidiana e, por isso, mais eficaz.

A comparação com Denis Villeneuve é útil até certo ponto. Ambos tratam o espetáculo como veículo para inquietações de fundo; divergem no temperamento. Villeneuve trabalha intervalos e reverberações; Nolan trabalha atrito e colisão. Em “Tenet”, não há contemplação prolongada; há insistência. Essa insistência pode cansar alguns. A outros, produz transe lúcido: a mente acompanha com atraso controlado, e é nesse atraso que se instala o prazer.

A discussão sobre a mixagem de som, assunto recorrente no lançamento, pede contexto. O desenho sonoro funciona como camada dramatúrgica, não como verniz. Há momentos em que vozes se perdem sob motores e percussões. Não parece descuido; parece escolha. A informação verbal cede lugar à informação sensorial. A questão essencial é a legibilidade mínima da intriga. Em “Tenet”, ela se preserva. O filme transfere trabalho para o olhar quando a audição abdica por instantes. O quadro fica responsável por explicar aquilo que a fala decide afogar por segundos.

O contexto de estreia importa. “Tenet” foi a primeira grande aposta das salas na reabertura pandêmica. O dado externo não altera a obra, mas ajuda a entender a convicção de Nolan no ritual coletivo da projeção. Filmagem em 70mm e IMAX, efeitos práticos de escala arriscada, o peso físico de um avião inteiro em cena: essa coerência entre tema e meio sustenta a proposta. Se a história discute inscrição do tempo na matéria, faz sentido que a realização insista em aço, vidro, combustível. Não é fetiche; é método de trabalho.

O clímax consolida conceito e emoção. A “pinça temporal” (equipes avançando em tempos opostos, fitas vermelha e azul, sincronias que desafiam explicação corrida) transforma o campo de batalha em diagrama legível. Explosões florescem para trás, escombros reerguem paredes por instantes, e, no centro, um gesto pequeno vence o barulho: a amizade de Neil devolve ao Protagonista um horizonte ético. O segredo compartilhado por etapas reorganiza a memória de tudo o que se viu. O épico cede ao íntimo sem melodrama; o filme respira.

Se a pergunta inicial era o que Nolan faz quando confronta personagens com forças que excedem sua vontade, “Tenet” responde sem slogan. O controle, sugere, é sempre empréstimo. Toda engenharia traz embutida a semente de falha humana. A elegância do plano resiste pouco ao primeiro contato com contingências. O ceticismo do diretor, no entanto, não cai no niilismo. Há confiança modesta no discernimento: reconhecer o momento de saber menos para agir melhor.

“Tenet” ocupa lugar central na filmografia do autor. Dialoga com “A Origem” e “Dunkirk”, antecipa dilemas que viriam adiante, reafirma a parceria com Hoyte van Hoytema e absorve o vigor rítmico de Ludwig Göransson. Mais que isso, oferece ao cinema de ação uma combinação rara: pensamento sem perda de impacto. Para quem busca cartilhas, o filme resiste. Para quem aceita que pensar pode ser forma de sentir, ele recompensa. Quando as luzes sobem, fica a sensação de ter atravessado um mecanismo em funcionamento, desses que mudam enquanto operam, desses que só revelam estrutura quando já não se pode voltar.

Filme: Tenet
Diretor: Christopher Nolan
Ano: 2020
Gênero: Ação/Ficção Científica/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Revista Bula

A Revista Bula é uma plataforma digital brasileira fundada em 1999, que atua como revista e também como editora de livros. Com foco em literatura, cultura, comportamento e temas contemporâneos, adota uma linha editorial autoral, com ênfase em textos opinativos e ensaísticos. Seu conteúdo é amplamente difundido por meio das redes sociais e alcança milhões de leitores por mês, consolidando-se como uma das referências em jornalismo cultural no ambiente digital. Além da produção de conteúdo editorial, a Bula mantém uma linha de publicações próprias, com títulos de ficção e não ficção distribuídos em formato digital e impresso.