O filme que foi exibido uma única vez — e depois desapareceu para sempre Far Out / IMDB

O filme que foi exibido uma única vez — e depois desapareceu para sempre

Jerry Lewis fez um filme sobre um palhaço que leva crianças a uma câmara de gás. Ele se arrependeu no dia seguinte. Exibido uma única vez em segredo, o longa se tornou o maior tabu da história do cinema. Envolto em silêncio desde sua realização em 1972, na Suécia, “The Day the Clown Cried” é uma obra que provoca fascínio e desconforto. Uma espécie de Santo Graal do cinema proibido, o filme, visto por raríssimas pessoas, é ambientado na Segunda Guerra Mundial e narra a história de Helmut Doork, um palhaço fracassado que é preso por satirizar Hitler e acaba sendo forçado pelos nazistas a entreter crianças judias no caminho para as câmaras de gás.

Ícone do humor físico e pastelão nos anos 1950 e 60, Lewis buscava naquele momento uma reinvenção artística. Desejava ser reconhecido como um criador mais sério e ambicioso. No entanto, ao tentar dramatizar o Holocausto a partir da figura tragicômica de um palhaço, mesmo com intenções supostamente humanitárias, o ator-diretor mergulhou em um terreno moral extremamente sensível. O projeto, que começou com entusiasmo, rapidamente se transformou num peso insuportável. Após a filmagem, Lewis refletiu sobre o resultado e reconheceu que a obra soava profundamente inadequada. Apesar de ter finalizado o material, se recusou terminantemente a lançá-lo. Pior: admitiu publicamente, em entrevistas posteriores, que o considerava uma vergonha. “Cometi um erro. Eu estava errado. E não há ninguém a quem culpar além de mim mesmo”, afirmou em entrevistas.

Apesar da tentativa de apagar o filme de sua trajetória, a lenda só cresceu com o passar das décadas. O roteiro original, escrito por Joan O’Brien e Charles Denton, passou a circular entre colecionadores. Rumores indicam que uma única exibição privada foi realizada em 1979, nos Estados Unidos, para alguns executivos de estúdio. O crítico Harry Shearer, um dos poucos que alegam ter visto o filme, disse à revista Spy Magazine, em 1992, que o longa é “uma experiência que começa curiosa, depois fica desconfortável, e termina de forma francamente inaceitável”. Essa aura de mistério ajudou a consolidar “The Day the Clown Cried” como um dos filmes mais malditos, e mais cobiçados, da história do cinema.

Em 2015, poucos anos antes de sua morte, Jerry Lewis doou uma cópia do filme à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. No entanto, impôs uma condição: o material só poderia ser exibido a partir de junho de 2025. Ou seja, estamos diante do confronto com esse fantasma. A expectativa é que o longa, ainda guardado sob chave, possa ser exibido para fins de pesquisa e, eventualmente, chegue ao público, não sem despertar polêmica renovada.

O longa-metragem nos obriga a refletir sobre os limites éticos da arte, o papel do artista diante da história e o abismo entre intenção e recepção. Há temas que não devem ser tocados? Representar o trauma do Holocausto exige não apenas sensibilidade, mas uma compreensão profunda de suas implicações éticas. No caso de Lewis, o dilema parece ter sido esse: como conciliar a linguagem do palhaço, cômica por essência, com a maior tragédia do século 20? A resposta, para ele, foi clara: não se conciliam. E, talvez por isso, o filme nunca tenha saído da sombra. O mistério e o tabu têm menos a ver com o que está na tela e mais com o silêncio absoluto que a cercou. Em “The Day the Clown Cried”, a verdadeira comoção talvez esteja naquilo que o próprio criador não teve coragem de mostrar.

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.