A história mais bonita que você vai ver esta semana está na Netflix — e vai ficar com você por muito tempo Divulgação / Paramount Pictures

A história mais bonita que você vai ver esta semana está na Netflix — e vai ficar com você por muito tempo

Por mais espírito que se tenha, a verdade é que ninguém joga para perder. A vitória carrega em si o peso de todos os obstáculos vencidos e a coragem de não desistir na primeira dificuldade. Não se trata apenas de derrotar adversários, mas de vencer limites internos, superar inseguranças e dominar o medo. Há que saber-se perder e ganhar, praticando a humildade também no lugar mais alto do pódio, o primeiro degrau na escalada de novos desafios e quase exorbitantes. O triunfo é sempre o começo de uma outra jornada, mas como entender isso numa fase da vida em que todas as coisas são absolutamente desconhecidas e sequer se pode ter certeza da própria vontade? Robert James Fischer, o Bobby Fischer a que alude o título original de “Lances Inocentes”, pagou um preço alto ao tornar-se um dos maiores enxadristas dos Estados Unidos. Parece que algo em Fischer, o único campeão mundial de xadrez nascido em solo americano, quebrou-se para sempre, e Steven Zaillian vale-se desse argumento ao esmiuçar a biografia de Joshua Waitzkin, uma promessa dos tabuleiros em meados dos anos 1980.

O roteiro de Zaillian, baseado em “Searching for Bobby Fischer” (“procurando por Bobby Fischer”, em tradução literal; 1988), o livro de Fred Waitzkin, pai de Josh, fornece uma pletora de detalhes acerca da trajetória errática do garoto até ser reconhecido como um talento precoce do xadrez. Josh é uma criança absolutamente normal, excetuando-se uma quase obsessão pelos oito peões e um par de torres, cavalos e bispos, além, claro, da rainha e do rei. Ele frequenta os torneios de rua no Washington Square Park, em Nova York, levado pela mãe, Bonnie, uma influência ambivalente, que o estimula, mas o segura um pouco demais, talvez pressentindo o mal escondido na glória. Desde o primeiro momento, ainda que não saiba muito bem o que está acontecendo consigo, Josh impõe-se, como se apenas obedecesse a sua própria natureza, e o diretor aposta na sinceridade da criança para galgar outras abordagens. Max Pomeranc manifesta uma assombrosa compreensão do personagem, enquanto Joan Allen serve-lhe de escada, realçando a habilidade artística do colega. Pomeranc e Allen tomam conta de boa parte da introdução, até que a história fica bem mais séria.

Depois de graduar-se no xadrez de rua, orientado por Vinnie, o professor informal interpretado por Laurence Fishburne, Josh aprimora a técnica tomando aulas com Bruce Pandolfini, um figurão da Federação de Xadrez dos Estados Unidos. Se Bonnie tentava proteger o filho, Fred o entrega de bandeja a Pandolfini, que não alivia. O segundo e o terceiro ato do filme são pródigos em trechos nos quais o xadrez é visto como uma espécie de sacerdócio, com homens movimentando as peças em golpes ágeis e precisos, não raro ao termo de uma  espera torturante aos leigos. Fred trata de reforçar em Josh essa perseverança e essa abnegação, e nas entrelinhas lê-se que isso é não o xadrez, mas o existir ele mesmo. Na pele de Pandolfini, Ben Kingsley sobe e desce, ora como um austero mago cartesiano, ora exercendo o lado humano e até paternal de um sujeito pouco dado a instabilidade das emoções, mas Joe Mantegna é o grande rouba-cena aqui, ao ponto de sugerir que “Searching for Bobby Fischer” — e, por extensão, o próprio longa — tem todo o jeito de um mea culpa de Fred Waitzkin, embora Josh tenha sido sempre muito mais centrado do que se poderia esperar de um garotinho frágil a uma análise ligeira. E que a vida é mais que uma fria disputa.

Filme: Lances Inocentes
Diretor: Steven Zaillian
Ano: 1993
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.