A obra de Jorge Amado ocupou ao longo de décadas uma posição curiosa na literatura brasileira. Simultaneamente foi consagrada pelo grande público e tratada com reticência por boa parte da crítica. Os romances conquistaram leitores aqui e em todo o mundo, mas, em muitos círculos intelectuais, eram vistos como folclorizantes, populistas ou datados por conta do viés político. A situação tem mudado sob novas lentes, com reconhecimento de sua importância histórica e o resgate da proposta narrativa. Um projeto literário que, no fundo, sempre enfrentou o desafio de imaginar o Brasil enquanto nação.
Quando a literatura brasileira parece reencontrar na atualidade o desejo de narrar o país, Jorge Amado ressurge como um precursor necessário e também incômodo. A volta da narrativa da nação na atualidade, longe de significar um retorno a modelos superados de nacionalismo, implica repensar o projeto de Amado à luz dos impasses contemporâneos. Nesse movimento, destacam-se estudos e novos autores e autoras que, ao seu modo, atualizam a tradição que ele inaugurou nos anos 1930. Estamos falando de uma literatura popular e política que elaborou a ideia de um país miscigenado.

Por muito tempo, a fortuna crítica de Jorge Amado revelou uma desconfiança acadêmica. Um dos desconfiados foi Alfredo Bosi, que classificou os romances do autor baiano de “baixa tensão” narrativa, populistas e sensuais, em sua “História Concisa da Literatura Brasileira”. “O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária”, avaliou o crítico paulista. Nota-se, neste trecho, o ranço de certos pensadores de esquerda com as diretrizes do Partido Comunista, o Partidão, ao buscar o “homem simples” brasileiro e apostar numa aliança furada entre revolucionários e a burguesia nacional.
Para Antonio Candido, nos livros de Jorge Amado, “o negro entrou pela primeira vez maciçamente na ficção brasileira, com a sua poesia e a sua pobreza, as suas lutas e crenças. Escritor cursivo, irregular, Jorge Amado insuflou, todavia, na sua obra uma poesia e uma vibração que pareciam redimir as falhas, tornadas no entanto bastante visíveis na passagem do tempo. Nesses romances, há um intuito ideológico ostensivo de mais, vírgula, que, por não ser incorporado com o elemento necessário à composição, parece com frequência superposição indigerida”.
Novas leituras
Hoje, a obra de Amado encontra novos intérpretes que reconfiguram seu lugar no campo literário. O principal deles é Eduardo de Assis Duarte, que lançou neste ano “Narrador do Brasil — Jorge Amado, Leitor de seu Tempo e de seu País”. Antes, em “Jorge Amado: Romance em Tempo de Utopia”, Duarte se debruçou na chamada “fase proletária” do autor baiano, marcada pelo engajamento e pela militância comunista, entre os anos 1930 e 1950. Neles, esboçava-se a literatura de construção do povo brasileiro como sujeito histórico, articulando luta de classes, consciência política e denúncia social.
O “Narrador do Brasil” avança para a fase mais madura e popular do escritor. Romances como “Gabriela, Cravo e Canela”, “Tieta do Agreste”, “Dona Flor e seus Dois Maridos” e “Tereza Batista Cansada de Guerra” consolidaram o prestígio nacional e internacional de Jorge Amado, o que o tornou para muitos leitores e leitoras o maior contador de histórias do país. Nessa fase, a narrativa abandona o tom político deliberado e mergulha na complexidade de uma brasilidade baiana, sensual, contraditória, mestiça e profundamente marcada por desigualdades históricas.

O mérito de Duarte está em reler essa produção com categorias contemporâneas: classe, gênero e etnicidade. Não se trata apenas de identificar personagens negros ou mulheres fortes nos romances, mas de entender como essas figuras constroem um imaginário nacional a partir da Bahia. Um território simbólico onde se encontram tradições ibéricas, africanas (especialmente iorubás) e indígenas. O Brasil de Jorge Amado é um país marcado por sincretismos e antagonismos. Há o entrelaçamento de erotismo, candomblé, cultura popular, conflitos de classe, patriarcalismo e força feminina em suas narrativas. Uma nação contada desde as suas margens.
A revalorização crítica vem acompanhada por um resgate biográfico e simbólico de sua figura pública. A biografia assinada por Josélia Aguiar cumpre um papel decisivo nesse sentido. Ao reconstituir a trajetória de vida do autor, da infância às viagens internacionais, da militância comunista à consagração como ícone da literatura nacional, o livro contribui para firmar a imagem complexa e coerente de Jorge Amado. Um intelectual orgânico, profundamente inserido em seu tempo, mas também artesão narrativo capaz de articular o popular e o político com rara eficácia junto aos leitores.
A imagem do grande escritor popular foi além da construção doméstica, para consumo nacional. Como mostra Marcelo Ridenti, em “Internacionalização cultural comunista: Jorge Amado e seus camaradas da América Latina”, o autor baiano virou também produto de uma rede internacional de circulação cultural forjada no interior do comunismo internacional. Os escritores Louis Aragon e Pablo Neruda foram fundamentais na difusão de sua obra na Europa e na América Latina. A imagem do Brasil mestiço e politicamente engajado atravessou fronteiras.
Mas, talvez, nenhum veículo tenha sido tão poderoso na consagração de Jorge Amado quanto as adaptações para o cinema e a televisão. Telenovelas como “Gabriela” e “Tieta” fizeram de seus personagens arquétipos populares, sedimentando a ideia de um Brasil exuberante, sincrético, profundamente ligado às raízes africanas e à religiosidade popular. Era, de certo modo, a tradução visual e dramatúrgica do que a crítica chamaria de “nacional-popular”. Surgiu um esforço de construir, por meio da arte, uma ideia de povo, cultura brasileira e identidade comum a partir traços culturais baianos.
Ideologia da mestiçagem
A brasilidade de Jorge Amado se ancorava claramente na ideia de sincretismo religioso, na força dos orixás nas tensões entre coronelismo local e resistência popular. Tudo isso emoldurado por uma narrativa que buscava conciliar conflito e celebração, denúncia e encantamento. Junto a isso, havia uma ideologia da mestiçagem que revirou de cabeça para baixo a visão que os brasileiros tinham de si mesmos na primeira metade do século 20. Nesse trabalho, Jorge Amado teve a companhia de Gilberto Freyre, com o seu “Casa Grande & Senzala”. O branqueamento racial e cultural deu lugar a uma perspectiva inovadora e que ainda persiste no debate público brasileiro.
Mas a permanência apaziguadora dessa imagem positiva se vê hoje atravessada por novas tensões. No século 21, a sociedade brasileira assiste ao avanço de uma cultura cristã conservadora que rejeita frontalmente a herança cultural africana e os valores celebrados por Jorge Amado. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, nunca se valorizou tanto a cultura negra como matriz fundadora do Brasil. Isso vem muitas vezes associado ao que setores conservadores chamam de “identitarismo”.
O que as leituras conservadoras ignoram é que as questões de identidade (classe, gênero, etnia) já estão na obra de Jorge Amado desde o início. Muito antes de se serem bandeiras de militância ou categorias analíticas da crítica, esses temas eram matéria viva em seus romances. Sua literatura foi, talvez, uma das primeiras tentativas de narrar o Brasil em sua complexidade e de fazê-lo com alcance popular.
Os herdeiros literários
A prova definitiva da vitalidade de Jorge Amado está na qualidade e na ousadia de seus herdeiros. Três nomes se destacam nessa linhagem, cada um à sua maneira aprofundando e reinventando a narrativa de seu mestre: João Ubaldo Ribeiro, Ana Maria Gonçalves e Itamar Vieira Júnior. Como não poderia deixar de ser, uma parte da crítica ainda faz caras e bocas ao analisar esses autores. Incomoda os críticos o recurso ao transe, ao lado irracional da vida, presentes nessa tradição narrativa que se formou.
João Ubaldo talvez seja o mais direto na herança, por partilhar o mesmo espaço simbólico e carregar adiante a ideia de narrativa totalizante da nação. Em “Viva o Povo Brasileiro”, ele atravessa quatro séculos de história brasileira num romance ambicioso, polifônico e profundamente irônico. A construção de um Brasil contraditório, onde a opressão e a astúcia popular se misturam, remete à tradição do romance histórico e ao tom popular que Jorge Amado também cultivou. A novidade foi levar essa proposta a um novo grau de densidade formal e crítica. É, sem dúvida, um livro que ainda não foi compreendido em sua totalidade.

Ana Maria Gonçalves, em “Um Defeito de Cor”, retoma os fios da narrativa da nação para reescrevê-los a partir de um olhar radicalmente outro. A protagonista negra, africana, mulher, reconta o Brasil a partir da dor da escravidão, da travessia atlântica, da resistência íntima e coletiva. A Bahia de Ana Maria é, como a de Jorge Amado, um território simbólico, mas agora filtrado por uma consciência pós-colonial, atenta aos apagamentos e às violências estruturais que moldaram o país. A escrita é densa, detalhista, caudalosa e alinha-se com uma tradição de romances de formação crítica.
Itamar Vieira Júnior consolida essa linhagem numa chave ainda mais contemporânea. Em “Torto arado” e “Salvar o Fogo”, ele retoma os temas fundadores da obra de Jorge Amado (conflito rural, herança africana). O passo adiante em relação ao precursor está numa estética contida e lírica. A literatura de Vieira participa de um movimento mais amplo na literatura mundial atual, onde questões de território, identidade racial, ancestralidade e gênero convergem na busca por formas narrativas capazes de representar a complexidade das experiências periféricas. É Jorge Amado relido à luz de uma nova sensibilidade que é mais trágica e marcada pelas fraturas expostas do país.
Brasil reconfigurado
Retomar Jorge Amado significa também reposicionar a ideia de Brasil. Nas últimas décadas do século 20 e os primeiros anos do 21, o conceito de “nação” passou por um longo declínio, ao sabor da “Fim da História”. Influenciado por teorias pós-modernas, o debate cultural rejeitou as grandes narrativas totalizantes (marxistas, psicanalíticas ou identitárias) em nome de perspectivas fragmentárias, desconstrutivas e focadas na pluralidade das vozes minoritárias. Aflorou a desconfiança diante de qualquer projeto de totalidade cultural. A crítica à identidade nacional como essencialista, paralisante ou mesmo opressora se tornou dominante em muitos círculos acadêmicos e artísticos.
Mas o século 21, com suas crises e suas urgências, tem cobrado outra postura. Desde o 11 de setembro de 2001, a geopolítica global recolocou em cena as questões religiosas, os pertencimentos territoriais e os discursos de identidade. A questão migratória colocou o tema da colonialidade na ordem do dia da Europa e dos Estados Unidos. A literatura, por sua vez, redescobriu espaços para pensar coletividades, memórias e reimaginar formas de comunidade. Nesse contexto, a obra de Jorge Amado reaparece para além nostalgia e pode entrar nesse campo de disputa.
A identidade brasileira está sendo reimaginada a partir de múltiplos vetores. Por um lado, está o resgate de raízes africanas, atlânticas, indígenas e mestiças. De outro, ocorreu o avanço de uma cultura cristã-evangélica que rejeita abertamente essas matrizes em nome de valores tradicionalistas. O Brasil é atravessado por narrativas em conflito, e é justamente nesse embate que a literatura ganha força. A valorização de Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Ana Maria Gonçalves e Itamar Vieira Júnior revela um país em busca de sentido, por imagens de si.
Ler Jorge Amado hoje pode ser um gesto estético e político (para horror dos descontentes com a voga identitária). A literatura ainda pode tentar dar forma à ideia de nação, nesse mundo atravessado de crises sistêmicas. Não vai ser um projeto homogêneo ou autoritário como foi no passado e que ainda se sonha na extrema-direita, mas como um campo em permanente elaboração. O povo brasileiro tem uma complexidade histórica que demanda continuamente a construção de narrativas.