A história do romance brasileiro que teria sido elogiado por William Faulkner

A história do romance brasileiro que teria sido elogiado por William Faulkner

Graciliano Ramos não foi anunciado, promovido nem celebrado em campanha alguma quando seu nome começou a circular fora do Brasil. Tampouco “Vidas Secas” chegou ao exterior como obra de exportação nacional. Publicado em 1938, o romance atravessou os anos com a mesma sobriedade de suas páginas: sem alarde. Décadas depois, ele seria selecionado por um projeto internacional de tradução liderado por William Faulkner, cujo objetivo era escolher os romances mais representativos da América Latina para o público anglófono. “Vidas Secas” foi o escolhido para representar o Brasil. E embora Faulkner nunca tenha escrito ou declarado publicamente um elogio direto à obra, sua escolha funciona como um gesto inequívoco de reconhecimento. Às vezes, o que não se diz carrega mais peso do que qualquer prefácio.

Não há registro de entrevista ou declaração oficial. Nenhuma carta, conferência, prefácio ou nota de rodapé. William Faulkner, ao que se sabe, jamais disse, com todas as letras, que admirava Graciliano Ramos. Mas, nos bastidores do que seria uma das mais ambiciosas iniciativas editoriais de seu tempo, o “Ibero-American Novel Project”, coube a ele, em posição de liderança curatorial, apontar os romances mais representativos da América Latina para tradução e circulação internacional. A proposta era simples e monumental: selecionar, para cada país, uma única obra que sintetizasse a força literária da nação no pós-guerra. Do Brasil, a escolhida foi “Vidas Secas”. Não “Grande Sertão: Veredas”. Não “São Bernardo”. Não “Capitães da Areia”. Foi o romance curto, seco, impiedoso de 1938.

Vidas Secas, de Graciliano Ramos (Record, 176 páginas)

É fato que o romance antecede cronologicamente o recorte pós-Segunda Guerra. Mas sua presença na curadoria foi justificada não pela data, mas pela permanência. “Vidas Secas” havia sobrevivido ao tempo com a mesma obstinação de seus personagens. Era menos um romance de época e mais uma espécie de ferida nacional em estado de linguagem. Faulkner, ao lado de acadêmicos e editores, ofereceu à obra um selo não dito. A escolha por si só era uma forma de elogio. E quando vem de Faulkner, até o silêncio soa como chancela.

No Brasil, essa história chegou como rumor. Assis Brasil foi um dos primeiros a registrar, em crônica, a informação de que Faulkner teria elogiado Graciliano. A frase era vaga, mas poderosa: teria comparado o brasileiro a Hemingway. A anedota se espalhou, ganhou força em círculos literários e, aos poucos, fixou-se como um fato quase mítico. Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido jamais confirmaram o dito, tampouco o desmentiram. Candido, aliás, preferia sustentar a análise estética. Para ele, “Vidas Secas” era um marco da sobriedade literária brasileira. Um texto que operava uma espécie de realismo desidratado, em que a secura da frase correspondia à secura da paisagem. A miséria não era retratada com compaixão ou denúncia, mas com uma lucidez impessoal, quase clínica. Graciliano, para Candido, narrava como quem corta. E talvez tenha sido isso que encantou Faulkner ou que o levou a escolher. Porque há afinidades que dispensam tradução.

As proximidades entre os dois autores são gritantes, embora seus estilos difiram. Faulkner se permitia excessos, fluxos de consciência, labirintos narrativos. Graciliano, ao contrário, escrevia como quem suprime. Mas ambos construíram paisagens morais com peso geológico. O sul profundo dos Estados Unidos e o sertão nordestino são territórios equivalentes em sua exclusão histórica. Ambos produzem personagens esmagados por forças maiores: o tempo, a terra, a pobreza, o analfabetismo, a injustiça que se repete como ciclo. Fabiano não é menos trágico que Quentin Compson. Sinhá Vitória sonha como Lena Grove, mas sonha menos. Os meninos sem nome em “Vidas Secas” estão à margem da linguagem como Benjy, o idiota sensorial de “O Som e a Fúria”. E Baleia, a cadela, morre com mais dignidade que muitos homens de “Enquanto Agonizo”.

“Vidas Secas” foi escrito após a prisão de Graciliano Ramos, em 1936, durante o Estado Novo. Acusado de ligação com o comunismo, foi libertado sem provas. Mas o trauma permaneceu. O livro carrega essa desconfiança: na linguagem, no poder, na própria possibilidade de comunicar.

Composto por treze capítulos autônomos, o romance avança em ciclos, como seus personagens. Secas, trabalhos provisórios, violência e silêncio se repetem. A estrutura ecoa a própria precariedade da vida narrada.

Nada em “Vidas Secas” é gratuito. A linguagem é austera, deliberadamente sem floreios. As falas são truncadas, repetitivas, quase gestuais. A oralidade do sertão está ali, mas filtrada, limada, depurada. Graciliano não folcloriza. Ele corta. Não há discurso direto nos momentos mais críticos. As emoções são sugeridas por pausas, por gestos minúsculos, por verbos deslocados. O capítulo “Baleia” é um monumento de dor sem sentimentalismo. A cadela agoniza em silêncio. Sonha com um mundo molhado. E morre sem saber por quê. É ali, talvez, que o livro toca a fronteira da grande literatura: quando a dor se torna indizível, e mesmo assim diz.

Quando o projeto liderado por Faulkner escolheu “Vidas Secas” como representante do Brasil, a obra já circulava no país com respeito, mas ainda era vista por alguns como romance regional. O gesto editorial, ao lado de obras como “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo, ou “Dona Bárbara”, de Rómulo Gallegos, operou uma reconfiguração silenciosa: “Vidas Secas” passou a ser lido também como peça de um mosaico maior, o da literatura latino-americana que dialogava com a miséria sem estetização. A tradução para o inglês, assinada por Ralph Dimmick, permitiu sua circulação em universidades americanas e europeias, onde passou a ser lido em paralelo a Steinbeck, Faulkner, Hemingway. Não houve comoção. Mas houve escuta.

No Brasil, a recepção inicial foi respeitosa. Graciliano já era autor de “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia”. Mas foi só a partir dos anos 1960, especialmente após a adaptação cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, que “Vidas Secas” foi alçado à condição de clássico absoluto. O filme, em preto e branco granulado, encarnava o espírito do livro: plano fixo, silêncio, poeira. Era Cinema Novo em estado puro. E o romance passou a ser lido como ele merecia, não como radiografia de um Brasil isolado, mas como manifesto estético da secura ética de um país.

Hoje, a permanência de “Vidas Secas” é incontornável. A fome não acabou. O sertão permanece. A linguagem, quando grita demais, se esvazia. E Graciliano continua ensinando que há mais poder numa frase curta do que numa exclamação. Autores como Francisco J. C. Dantas e Ricardo Guilherme Dicke reconhecem, de forma implícita, a linhagem que “Vidas Secas” estabeleceu: a de uma literatura que se recusa a explicar o mundo, mas que o mostra com a precisão de um golpe seco. Não imitam Graciliano, mas partilham sua ética. Narram o sertão, a terra, o silêncio, não como cenário, mas como estrutura interna da linguagem. Escrevem como quem perdeu a fé na palavra fácil. Como quem sabe que a secura também tem música.

Resta a pergunta: o que Faulkner viu ali? Ou, melhor, o que o levou a apontar aquele livro, entre tantos, como representante de um país que, para ele, devia parecer estranho, remoto, inatingível? A resposta talvez seja menos literária que ética. Faulkner reconheceu um igual. Um escritor que, como ele, falava de gente quebrada sem idealização. Que narrava a pobreza como estrutura, não como falha de caráter. Que sabia que há coisas que só podem ser ditas no limite da linguagem. Que entendia que o silêncio também escreve.

“Vidas Secas” continua ali. Calado, firme, sem clamar por plateia. Sua força vem disso. Do não dito. Do não resolvido. Do não domesticado. É, talvez, a mais seca e a mais humana de nossas literaturas. E se um dia William Faulkner realmente o elogiou, mesmo que sem dizer, não foi apenas pelo estilo. Foi porque, diante daquela terra calcinada, ele viu o espelho do seu próprio sul. E reconheceu o Brasil como ele também é. Sem metáforas. Sem ornamentos. Apenas com sede.

Revista Bula

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