Encontro com Régis: entre o flamenco e novas utopias

Encontro com Régis: entre o flamenco e novas utopias

“A nova utopia é uma borboleta negra, desatenta, com olhos exuberantes.” Assim abre Régis Bonvicino a primeira das quatorze partes de “A Nova Utopia”, poema que dá nome ao livro que culminou na derradeira publicação que comporia a sua obra. Tive a oportunidade de receber o livro em mãos, presenteado pelo próprio Régis, quando nos encontramos na Espanha em finais de 2023. E tornou-se, desde então, um daqueles volumes que retornam à mesa de cabeceira, com reaberturas noturnas e leituras fragmentadas.

Sempre que revisito “A Nova Utopia”, principalmente agora após a notícia da morte de Régis em Roma, sinto que a figura dessa borboleta negra, de olhos exuberantes, instala-se como um presságio no interior da sua leitura. Aqui, é impossível não lembrar do capítulo XXX de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que a aparição de uma borboleta também negra — sinal de maus agouros segundo certas superstições — ocorre pouco depois da entrada em cena de Eugênia, então apresentada a Brás Cubas por Dona Eusébia. Sabemos do desfecho da história entre o narrador-personagem e a jovem Eugênia, porém, no afã de afastar augúrios indesejados, naquele momento inicial Brás Cubas consegue espantar a borboleta com um lenço e acalmar o desespero de Dona Eusébia ante a ameaça do pobre inseto. E não adiantou o fato de Brás Cubas ter matado, no capítulo seguinte, uma borboleta igual àquela, que lhe invadiu o quarto: gesto inútil para dissipar os trágicos acontecimentos que já se anunciava ao longo da sua história.

A Nova Utopia, de Régis Bonvicino (Editora Quatro Cantos, 160 páginas)

Traço este paralelo pois talvez seja da permanência de certos presságios que “A Nova Utopia” se alimente, tornando a imagem inicial da borboleta não uma metáfora encerrada em si, mas o centro de disseminação das inquietações que pairam sobre o olhar do poeta: um caminhante que parece passear sobre escombros da civilização enquanto escreve. Ainda mais pertinentes são essas imagens para tentar ilustrar aqui como era caminhar ao lado de Régis naqueles dias em Madri: alguém com os olhos exuberantes de atenção, que se banqueteava com cada detalhe das construções, das ruas, dos transeuntes, dos mendigos do primeiro mundo. Embora Régis já conhecesse a cidade de outras épocas, pude ajudá-lo em suas buscas por livrarias antigas ao longo da Calle de los Libreros, enquanto ele buscava, com certa obstinação de quem recolhe fragmentos de um desejo íntimo, livros sobre flamenco.

É curioso como Régis tinha uma espécie de fascínio por Camarón de la Isla, um dos maiores nomes do flamenco espanhol, e desejava encontrar tudo o que pudesse sobre sua biografia e arte. Recordo bem a sua alegria contida ao encontrar um volume com raras fotografias de Camarón, como quem escutasse um cante jondo entre as imagens impressas. Naquela mesma ocasião, fomos juntos a um espetáculo de flamenco em Torres Bermejas, palco onde Camarón e muitos outros cantaores famosos haviam construído suas carreiras. Durante o espetáculo, Régis mirava cada gesto dos bailaores e comentava comigo o tipo de técnica empregada, a diferença das palmas, o compasso do sapateado e seus significados. Ele era uma enciclopédia de música.

E não só de música. Entre vários cafés, dos muitos que moviam Régis, falamos também de um “Outro tempo espanhol”, de como a política e a história estavam totalmente presentes em seus poemas, temas que ele dominava bem. Comentamos com irremediável pessimismo algumas “Notícias: da Síria” e “do Lixão de Tabatinga”, sobretudo. Era, de fato, um “crânio privilegiado”, para sacar Valle-Inclán de nossas conversações, de um humor e inquietude contagiantes.

Hoje, vejo como esse encontro passado com o autor se torna incontornável ao regressar a seus textos. É como se aquelas pausas do fôlego nos gritos do cantaor, emulando a Camarón, que tanto lhe encantou, fossem parte de minha memória auditiva ao ler seus poemas. Haverá, certamente, ritmos não descobertos no poeta e em sua vasta obra, que recolheu pedaços de um mundo em ruínas, o concreto e os concretismos desfeitos, entrecortados por extinções e exclusões sociais, em um urbano que se implode na ânsia de velocidade e acaso. Quiçá a leitura de Régis ainda subsista na frágil figura de uma borboleta utópica que insiste em voar, mesmo quando o ar já se tornou irrespirável.

Júlio Bonatti

É graduado e mestre em História pela UNESP e possui doutorado em Linguística pela UFSCar. Desenvolveu atividades de pesquisa internacional como pesquisador visitante na School of Languages and Applied Linguistics da Open University (Reino Unido) e colaborou com projetos em Ciências Sociais na Universitat de València (Espanha). Atualmente, atua como coordenador de localização e tradução na Emeritus Institute of Management e como editor assistente da “Revista Piparote”. É autor do livro “Noam Chomsky: O Autor Entre a Linguística e a Política”.