Ler era viver antes de viver

Ler era viver antes de viver

Domingo é dia de ler e reler. Se o mundo de outras artes não me pertence, estou na faina literária há muitos anos: havia nos fundos da nossa velha casa, naquelas vielas de sonho do Setor Sul, um cômodo onde guardávamos os livros, evidentemente nunca espanados. E nada ali era proibido, mesmo os livros, digamos, mais picantes (obrigado, pai e mãe!). Era o “barracão”, como dizíamos, refúgio onde li muitos dos livros fundamentais — tal como disse Sartre, passei parte da infância “assaltando a sabedoria alheia”.

Também naquele cômodo, numa tarde preguiçosa (meu reino não por um cavalo, mas para ter de novo uma única tarde preguiçosa, um único momento sem tensão), descobri a “Enciclopédia Delta-Larousse”, numa edição de 1972 ou 73, e o “Dicionário Aurélio”, primeiríssima edição. (Sim, li e leio enciclopédias e dicionários. Sim, sei que é doença classificada no CID.) Na “Delta” li muitos verbetes sobre a Roma antiga e adquiri o estranho hábito de os copiar; foram horas agradáveis, mas posso garantir que saber que Cornélia Africana (um bom nome para a minha futura filha, sem dúvida) foi mãe de Tibério e Caio Graco não tem sido de muita utilidade na vida das minhas retinas tão fatigadas. O “Aurélio” viciou-me no gosto pelas palavras estranhas — cimitarra, nenúfar, seljúcida, samovar, caravançarai, dacha, imarcescível… Burro de carga sem antolhos que sou, sigo firme na vereda das leituras improváveis, absurdas e desnecessárias.

Tudo isso me deu uma profunda inveja do talento literário alheio. Poesia, por exemplo: leio “Tabacaria” e xingo Fernando Pessoa mentalmente, aquele grande fdp. “Com o Russo em Berlim”, “A Mesa” e “Máquina do Mundo” me fazem quase odiar Drummond, e o homem era sobretudo uma doce figura de barnabé. “Elegia Desesperada” é um dos poemas que Vinicius roubou de mim; já “Romance XXI ou Das Ideias” só não me traz devaneios assassinos porque Cecília Meireles morreu há muitos anos. Às vezes — sobretudo nos domingos melancólicos, como hoje — eu gostaria de ter escrito apenas um ou dois versinhos perfeitos, algo que fosse qualquer coisa de forte e simples, como esta coisa bela de Ungaretti, “È il mio cuore/ il paese più straziato” (“É o meu coração/ a terra mais maltratada”), trecho de um poema seu sobre uma cidade destruída na Primeira Guerra. (Sim, o meu coração também, às vezes, é terra maltratada; outras, é terreno maninho e sáfaro, mas sigamos lutando, que ninguém pensou que tocar a vida seria como o Senna pilotando em Mônaco.)

Vejam vocês: passei a minha vida lendo ensaios e ensaiando para escrever os meus próprios ensaios. Antevi sucesso, aplausos, o Nobel, conversinhas ao pé do ouvido com Vargas Llosa e Philip Roth. Eu seria íntimo de Alice Munro e confidente de Margaret Atwood; com ar impaciente, escreveria roteiros para cinema na minha casa à beira do Lago di Garda. Era, assim cri, o caminho natural desde que numa tarde preguiçosa, quando eu tinha menos de 15 anos (sim, antes de Cristo), lendo um livro qualquer no cômodo que mencionei da nossa casa de família, olhei vagamente para as estantes repletas e ali, a las cinco en punto de la tarde daquele dia modorrento, pensei adivinhar, com o peso esmagador das grandes visões, o resto da minha vida. As páginas impressas me cegaram como a visão do Salvador ofuscou Paulo na estrada de Damasco. Visões enganadoras, posso hoje dizer: veio antes uma doença um tanto paralisante e insidiosa e me sobrou escrever apelações, agravos e que tais — “não foi cova grande, foi cova medida a parte que me coube deste latifúndio”.

Tempos depois, porém, num encontro comigo mesmo numa hora negra da madrugada, outra revelação: vim ao mundo para observar, escrutinar e ver com olhos de ver, mas muito mais para meu consumo interno. Paulo Mendes Campos escreveu certa vez que a procrastinação (no caso, da escrita) seria como um comércio de cavalos em frente a uma vendinha do interior — pois quero esse comércio sempre aberto, e então, a despeito de mim mesmo, observando e escrutinando, passei a amar o próximo, mesmo sendo sincero no que digo, e esta tem sido minha obra talvez mais perfeita, ainda que passageira como arar no mar: a compreensão íntima do móvel alheio. É preciso mergulhar sem escafandro nas vidas que nos rodeiam.

Tem sido um domingo não só melancólico, este, mas sobretudo doce.

Marcelo Franco

é bibliófilo e promotor de Justiça.