Que Clarice Lispector (1920-1977) é muito mais citada que lida não resta dúvida. Quase meio século depois de sua morte, Clarice parece ter caído nas graças de leitores e não leitores, prontos, estes mais que os primeiros, a tecer as mais estapafúrdias teorias acerca da escritora, sua caudalosa produção quase sempre certeira, suas manias, seu temperamento quase nunca preciso. Essa paixão ignorante dá azo a devaneios tão insólitos quanto disparatados. Imaginá-la no Twitter, por exemplo, é um tentador anacronismo. Como reagiria a autora das frases insondáveis, das sutis confissões, daquela linguagem sempre à beira do abismo, num ambiente de curtidas apressadas, indignações coletivas e julgamentos instantâneos e categóricos? Clarice, em seus diários, cartas e muitas entrevistas, já parecia sentir-se irremediavelmente deslocada no mundo literário e nos círculos sociais que eram-lhe contemporâneos. Em tempos ainda mais velozes, polarizados e superficiais, pode-se afirmar que sua permanência no ciberespaço seria breve, brevíssima. E quiçá também desastrosa.
O mundo digital valoriza a autenticidade, desde que esta possa encaixar-se na lógica moralizante da hora. Clarice logo seria cancelada porque seu modo de ser é insuportavelmente livre, do politicamente correto e das convenções hipócritas; do feminismo militante e raivoso do conservadorismo inócuo e contraproducente; das incumbências próprias de seu ofício, que receava terem o poder de fazê-la virar uma espécie de funcionária pública, obrigada a dar satisfação de cada próximo passo e mudança de ideia, uma das marcas de seu espírito irrequieto. Seria outra vez tida por “alienada”, “tola”, “egocêntrica” — como Henfil (1944-1988) disse dela certa feita, ao deparar-se com uma sua crônica sobre flores e borboletas no “Jornal do Brasil” em plena ditadura —, ou “isentona”, “neutra em tempos de guerra”, por não renunciar a si mesma, ao que ela julgava urgente, a despeito da patrulha, sempre de olho.
O cancelamento de Clarice seria, assim, confirmar de novo que prefere-se o barulho ao diálogo, a perseguição à dúvida, o post em cima do laço à análise refletida, condutas que acuam o pensamento e desfiguram a arte. Cancelada ou não, Clarice jamais perderia a relevância, por ter aquele raro dom de ir ao fundo, contemplar a essência opaca da existência humana, e voltar ao chão duro da realidade. Clarice, a Pergunta, sempre quer — e pode — mais. E Twitter nenhum calaria sua voz, mais e mais necessária.