Se Castelo Rá-Tim-Bum estreasse hoje, seria cancelado

Se Castelo Rá-Tim-Bum estreasse hoje, seria cancelado

A televisão brasileira já viu dias de glória. Muito longe do bate-cabeça desencadeado primeiro pela internet e agora pelo streaming, havia uma busca por qualidade e inovação, ainda que as novelas, o filé do entretenimento, fossem sempre parecidas entre si. O público adulto, como não poderia ser de outra forma, era o centro do alvo, e rendia-se a folhetins ao longo dos quais uma mocinha, bela e abnegada, sofria com vilões sádicos (e, principalmente, vilãs, sádicas e campeãs de audiência) até poder ter o final feliz com seu príncipe. Não demorou muito para que as crianças também começassem a ser uma preocupação das emissoras, que logo viram na possibilidade uma mina de ouro. Exibido pela Record, o “Programa Pullman Junior” (1953-1969), apresentado por Cidinha Campos e Durval de Souza (1928-1982) — e que devia seu nome à famosa empresa de panificação — foi a primeira atração da TV brasileira voltada aos pequenos. Na Globo, o “Uni-Duni-Tê” (1965) foi o primeiro programa infantil da emissora, e três décadas mais tarde, essa fórmula ressurgiria na Cultura.

Criado por Cao Hamburger e Flavio de Souza, o “Castelo Rá-Tim-Bum” (1994-1997) até hoje é reverenciado como sinônimo de produção lúdica e educacional. Contudo, se fosse relançado agora, em plena era das redes sociais, da polarização e das suscetibilidades, a glória haveria de ser a mesma ou Nino, Doutor Victor, Morgana e companhia amargariam uma rejeição instantânea e encarniçada? A cultura do cancelamento, fenômeno típico das últimas décadas, é marcada por um impulso coletivo de problematizar declarações, atitudes ou gostos considerados insultuosos, obsoletos ou inadequados aos paradigmas éticos atuais.

Num cenário assim, até uma joia como “Castelo Rá-Tim-Bum” poderia ser austeramente castigada, a começar por Nino, um garoto de trezentos anos que vive isolado, a não ser pelo tio feiticeiro e pela tia bruxa. Logo apareceria um espírito de porco qualquer para dizer que Hamburger e Souza estariam fazendo apologia ao ocultismo, ainda que o programa nunca tenha incentivado nada semelhante — não muito tempo depois, J.K. Rowling faria o mesmo, com sucesso estrondoso como se sabe, na franquia “Harry Potter”, que, diz-se à boca miúda, teve “Castelo” por inspiração quando da temporada da escritora em Portugal. 

Não obstante o elenco tentasse reproduzir estratos diversos da sociedade — havia uma garota preta, um homem idoso, figuras de gênero ambíguo e personagens que aludiam ao folclore nacional —, quem poderia garantir que “Castelo” não acabaria tendo de aquiescer com a patrulha do politicamente correto e suavizar piadas, escondendo Doutor Victor e procurando para Nino um pai e uma mãe mais afinados às tradições? Morgana, a feiticeira milenar que volta ao passado com suas histórias, seria valorizada como uma guardiã da memória, ou apanharia do núcleo duro do miolo mole e do cidadão de bem, chamada de macumbeira, satanista e anticristã? Tíbio e Perônio, os cientistas que ensinam química e física com bom humor, coitados, teriam seu amor pelo conhecimento enaltecido por muitos, mas correriam o risco de serem tomados por patronos da educação domiciliar, uma involuntária blague autorreferente.

Uma reestreia de “Castelo Rá-Tim-Bum”, a exemplo do que se dá com “Mundo da Lua” (1991), também de Souza, decerto seria uma prova de fogo para autores, elenco, executivos e, claro, o respeitável e soberano público, que determinaria a longa duração das temporadas ou o súbito congelamento do projeto. Vivem-se tempos de medo e paranoia, que falam também acerca do entretenimento infantil. As crianças sempre foram capazes de fazer escolhas sensatas, valendo-se da  inteligência empírica, da experimentação.

Lamentavelmente, adultos pensamos que devemos mediar suas brincadeiras, suas fantasias, seu raciocínio, sua visão de mundo, vendo por resultado uma geração frágil em demasia, covarde, inepta. Encastelada, não naquela fortaleza de lindos devaneios, mas em suas tantas megalomanias presunçosas.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.