Esta semana, a The Economist publicou um editorial como quem atira um copo d’água num incêndio já alastrado: a web está morrendo, não em tamanho, mas em presença. Os sites murcham, os acessos secam, os criadores se tornam ruído de fundo em respostas instantâneas que ninguém sabe de onde vieram. A reportagem disse tudo com a calma britânica de sempre, mas o que estava ali era um obituário disfarçado de análise: a IA não apenas mudou a maneira de buscar, ela reconfigurou o próprio sentido de estar online.
Era um pacto: você lia, eu ganhava tráfego. Agora é tudo incerto, cortado, um silêncio vertical. O visitante não chega mais pela porta da frente, entra já sabendo tudo, diz “obrigado” ao robô, não vê ninguém, não fica. O que existia como caminho virou atalho. E, no atalho, não se vê paisagem; só se chega mais rápido a lugar nenhum.
É possível que tenhamos testemunhado, sem perceber, o desaparecimento do último resquício de reciprocidade entre texto e leitor. A leitura se tornou uma ação fantasma. As respostas existem antes de a pergunta ser formulada; os caminhos, antes do passo. Chatbots entregam sentenças completas como se descessem dos céus, condensadas, autocontidas, felizes. E os sites, essas casas de vidro mal lavadas e obsoletas, estão cada vez mais vazias. Os criadores de conteúdo observam de dentro as luzes se apagarem, uma a uma, sem alarde. Sem drama. Apenas a ausência de passos na varanda e anos de trabalho jogados fora.
Matthew Prince, CEO da Cloudflare, escutou a frase como se fosse uma metáfora de ficção científica: “Não são hackers, é a IA”, disse à “The Economist”. Não foi preciso dizer mais. O inimigo não tem rosto nem bandeira, é um sistema faminto, educado com a comida de quem agora devora. Sites informativos, fóruns, blogs, revistas, enciclopédias, todos sangram em silêncio. Quem vê de fora pensa que estão bem, talvez só quietos, introspectivos. Mas é o contrário: estão gritando para dentro.
O paradoxo dói: quanto melhor o chatbot responde, mais invisível se torna quem escreveu o que o alimenta. Ninguém mais lê o Stack Overflow, o lendário site de perguntas e respostas para profissionais e entusiastas na área de programação, mas todos leem Stack Overflow por meio do ChatGPT. Ninguém entra no site da Wikipédia, mas milhões sorvem seus parágrafos remodelados por um motor que não agradece ou pede permissão. O conhecimento se desloca sem deixar rastros. E, sem rastros, não há quem o siga.
A lógica atual é imoral, mas apenas se você acredita que criar exige recompensa. Se não, está tudo bem. A IA é só mais um intermediário eficiente. A promessa de “deixar o Google googlar por você”, o novo slogan do velho império, encobre o óbvio: ninguém mais visita os templos. Apenas recebe a bênção do sumo sacerdote máquina e volta para casa com o sagrado encapsulado num parágrafo de três linhas.
A revolta começa como um sussurro jurídico. “News Corp”, “The New York Times” etc ameaçando processos enquanto apertam a mão de quem processam. Corteja-se com uma mão, aciona-se o jurídico com a outra. Mas há algo de patético nisso tudo. Não se processa um deslizamento de terra. Não se multa um eclipse ou um furacão.
É claro que há tentativas. A Cloudflare, por exemplo, propõe que bots paguem pedágio, uma espécie de pedágio moral: “Se você vai sugar, pelo menos pague por isso”. Tenta fazer justiça algorítmica, redistribuindo o dinheiro dos anúncios conforme o valor do conteúdo absorvido. Tudo soa nobre, mas é como tentar ensinar ética a um filtro usado de café.
Talvez tenhamos errado ao imaginar que o valor de um conteúdo estivesse atrelado ao número de olhos que o viam. E talvez agora estejamos sendo punidos pela ingenuidade. Porque o que está acontecendo não é um roubo. É uma substituição de hábito. Uma reorganização da hierarquia cognitiva. O humano passa a ser um obstáculo, não um ponto de passagem. “Não clique, não leia, só pergunte.” A IA entrega. A IA já leu por você.
Mas onde moram os olhos que não clicam? Que espécie de leitura é essa que consome sem visitar? Há quem diga, como Robby Stein, vice-presidente de produto da Pesquisa Google, que estamos vivendo uma expansão. O número de sites aumentou 45% nos últimos dois anos. Mas esse inchaço é o de uma floresta morta: bela, densa e cheia de árvores ocas. O crescimento estatístico da web não prova vitalidade, apenas o acúmulo — um grande rio onde existem muitos mais pescadores do que peixes.
A resposta não é simples porque a pergunta nunca foi feita com clareza. O que queremos da internet? Informação? Presença? Uma sensação de pertencimento? Ou apenas o prazer instantâneo de ver uma dúvida desaparecer com um estalo? A IA nos dá isso. Mas, ao nos dar, nos acostuma mal, como aquela pessoa que não consegue mais viver sem o corretor ortográfico do Word e, com isso, vai desaprendendo. E, ao nos acostumar, quebra o pacto. O conteúdo deixa de ser ponte e se torna combustível. Queima rápido, e ninguém volta para ver de onde veio o fogo.
Empurrados para a irrelevância, os produtores de conteúdo se reinventam como podem. O Stack Overflow se fecha em clubes privados para empresas. Revistas sonham com newsletters que ninguém pedirá para assinar. Outros se escondem atrás de paywalls, não por arrogância, mas por instinto. O tráfego de leitores agora é mais parecido com tráfico de drogas: clandestino, invisível, imprevisível. A única forma de resistir é sair do mapa.
Em paralelo, uma pergunta moral se instala: se ninguém mais precisa ir até você, para que continuar criando? A resposta, talvez, seja um ato de fé. Escrever para ninguém. Criar sabendo que o leitor será uma máquina. Produzir como se ainda fôssemos vistos, mesmo que não sejamos mais lidos.
O mais perturbador, porém, é que há uma beleza terrível nesse desaparecimento. Um tipo de pureza trágica. Os textos agora existem por si, desprovidos de aplauso, de métrica, de comentários. São monumentos esquecidos, esperando que algum motor de IA os encontre e os transforme, outra vez, em resposta. É a literatura dos fantasmas.
A internet sobrevive, sim. Mas não como uma praça iluminada, e sim como arquivo. Não como conversa, e sim como ruído mineral. Cada site deixado para trás é como um planeta abandonado: cheio de atmosferas frágeis, registros fósseis, vegetações que não florescem mais.
Se a web morrer, não será por excesso de ignorância, mas por excesso de eficiência. Quem precisa de pontes quando já nasce do outro lado? Quem se dá o trabalho de caminhar por uma floresta se pode voar por cima? A IA não está matando a web, está apenas a tornando supérflua.