Não há diretor que convoque expectativas tão contraditórias quanto M. Night Shyamalan. Desde que materializou fantasmas metafóricos em “O Sexto Sentido”, sua filmografia oscilou entre o gênio antecipado e o fracasso anunciado. Mas seria uma miopia crítica reduzir sua trajetória a uma queda e possível redenção. O que está em jogo em “Fragmentado” não é o retorno a uma suposta “boa forma”, mas a reconfiguração de um cinema disposto a desentranhar o que há de mais instável na psique humana — mesmo que isso custe toda a elegância. Ao contrário do que muitos esperam de um thriller psicológico, Shyamalan não busca clareza nem catarse; ele insiste no opaco, no desconfortável, no grotesco. “Fragmentado” não tenta nos convencer da plausibilidade de seu enredo. Ele exige que aceitemos que a verdade, assim como o mal, pode ser polimórfica, indecifrável — e que, às vezes, a maior reviravolta é simplesmente não oferecer nenhuma.
No centro desse delírio controlado está Kevin Wendell Crumb, interpretado por um James McAvoy que não atua, mas se desdobra, se contorce e se multiplica com um fervor quase ritualístico. O que poderia ser apenas um exercício de estilo vira um espetáculo de colapso articulado: cada personalidade — da criança solitária ao zelador controlador, da britânica puritana ao estilista narcisista — opera não como caricatura, mas como peça de uma engrenagem emocional exaustivamente calibrada. McAvoy recusa a contenção e opta por uma fisicalidade que desafia qualquer parâmetro de sobriedade. Ele grita, dança, ameaça, implora, e não há como desviar os olhos. Shyamalan, ciente da natureza quase operística dessa performance, opta por uma encenação que abraça o exagero. A loucura, aqui, não é tratada com respeito clínico, mas com o fascínio brutal de quem observa um vulcão prestes a romper.
Entretanto, “Fragmentado” não é apenas sobre o homem que se desfaz. É, sobretudo, sobre a garota que, ao contrário, aprende a se recompor. Casey Cooke, vivida com precisão quase antinatural por Anya Taylor-Joy, é menos uma vítima do que um reflexo invertido de Kevin. A dor de ambos — ele, fragmentado pela violência; ela, endurecida por ela — nunca é exposta em termos didáticos. Shyamalan desenha suas trajetórias com um cinismo silencioso: os dois são sobreviventes de feridas invisíveis, embora um se esconda nelas e o outro as enfrente como trincheiras. O sequestro de Casey, Claire e Marcia não funciona como mero dispositivo narrativo, mas como arena simbólica onde colapsos internos colidem. Enquanto as colegas gritam e se desesperam, Casey observa — não porque é fria, mas porque já viu o horror de perto, e sabe que a salvação, muitas vezes, exige silêncio.
A Dra. Karen Fletcher, interpretada por Betty Buckley, surge como a única ponte entre o delírio e o discurso racional. Sua presença sugere uma tentativa de civilizar o caos, de explicar com palavras o que se desenrola com grunhidos. Mas até essa figura, que poderia simbolizar o triunfo da razão sobre o instinto, acaba tragada pelo próprio limite de sua crença. Ao defender que os múltiplos “eus” de Kevin representam o potencial humano elevado ao paroxismo, ela escancara uma hipótese incômoda: e se a monstruosidade não for exceção, mas possibilidade? “Fragmentado” não flerta com respostas. Ele as sabota. A relação entre médico e paciente aqui é menos terapêutica do que ritualística, como se cada sessão fosse uma tentativa fracassada de exorcismo. E, no fim, é justamente o irracional que vence — não por ser mais forte, mas por ser menos previsível.
Há, sim, momentos em que o filme cede à tentação do grotesco pelo grotesco — insinuações que beiram o exploratório, decisões estéticas que sacrificam complexidade por impacto. Mas mesmo nesses deslizes, há método: o desconforto não é falha, é ferramenta. A trilha sonora de West Dylan Thordson, por exemplo, não pontua a tensão — ela a cava, como se escavasse nervos expostos. O som, aqui, não ilustra, perturba. E o ritmo narrativo, sempre em estado de urgência, simula o funcionamento da mente de Kevin — rápida demais para o entendimento, lenta demais para o alívio. Quando o filme parece caminhar para uma conclusão redentora, Shyamalan frustra novamente o espectador, oferecendo não uma resposta, mas uma extensão do enigma. O universo do diretor se expande, e o que parecia uma história isolada se conecta a outras — não como fan service, mas como ampliação do abismo.
“Fragmentado” não é, portanto, um exercício de redenção estética de um cineasta “em crise”. É um gesto autoral de risco, que rejeita fórmulas e sabota expectativas. Shyamalan não está interessado em restaurar sua reputação; ele está em outra busca, mais incômoda e menos popular: entender o que há por trás da ideia de identidade. Ao retratar a mente como um campo de batalha em que o trauma negocia com o instinto de sobrevivência, o filme desafia o espectador a aceitar que o ser humano talvez não seja uno, coerente ou decifrável — e que há beleza, sim, nessa ruína organizada. O cinema de Shyamalan, enfim, não se rendeu ao fracasso nem renasceu das cinzas. Ele apenas continuou — mais caótico, mais cruel, e, paradoxalmente, mais lúcido.
★★★★★★★★★★