O filme que virou lenda ao faturar 31 vezes seu orçamento está de volta na Netflix Divulgação / Polygram Entertainment

O filme que virou lenda ao faturar 31 vezes seu orçamento está de volta na Netflix

Não há diretor que convoque expectativas tão contraditórias quanto M. Night Shyamalan. Desde que materializou fantasmas metafóricos em “O Sexto Sentido”, sua filmografia oscilou entre o gênio antecipado e o fracasso anunciado. Mas seria uma miopia crítica reduzir sua trajetória a uma queda e possível redenção. O que está em jogo em “Fragmentado” não é o retorno a uma suposta “boa forma”, mas a reconfiguração de um cinema disposto a desentranhar o que há de mais instável na psique humana — mesmo que isso custe toda a elegância. Ao contrário do que muitos esperam de um thriller psicológico, Shyamalan não busca clareza nem catarse; ele insiste no opaco, no desconfortável, no grotesco. “Fragmentado” não tenta nos convencer da plausibilidade de seu enredo. Ele exige que aceitemos que a verdade, assim como o mal, pode ser polimórfica, indecifrável — e que, às vezes, a maior reviravolta é simplesmente não oferecer nenhuma.

No centro desse delírio controlado está Kevin Wendell Crumb, interpretado por um James McAvoy que não atua, mas se desdobra, se contorce e se multiplica com um fervor quase ritualístico. O que poderia ser apenas um exercício de estilo vira um espetáculo de colapso articulado: cada personalidade — da criança solitária ao zelador controlador, da britânica puritana ao estilista narcisista — opera não como caricatura, mas como peça de uma engrenagem emocional exaustivamente calibrada. McAvoy recusa a contenção e opta por uma fisicalidade que desafia qualquer parâmetro de sobriedade. Ele grita, dança, ameaça, implora, e não há como desviar os olhos. Shyamalan, ciente da natureza quase operística dessa performance, opta por uma encenação que abraça o exagero. A loucura, aqui, não é tratada com respeito clínico, mas com o fascínio brutal de quem observa um vulcão prestes a romper.

Entretanto, “Fragmentado” não é apenas sobre o homem que se desfaz. É, sobretudo, sobre a garota que, ao contrário, aprende a se recompor. Casey Cooke, vivida com precisão quase antinatural por Anya Taylor-Joy, é menos uma vítima do que um reflexo invertido de Kevin. A dor de ambos — ele, fragmentado pela violência; ela, endurecida por ela — nunca é exposta em termos didáticos. Shyamalan desenha suas trajetórias com um cinismo silencioso: os dois são sobreviventes de feridas invisíveis, embora um se esconda nelas e o outro as enfrente como trincheiras. O sequestro de Casey, Claire e Marcia não funciona como mero dispositivo narrativo, mas como arena simbólica onde colapsos internos colidem. Enquanto as colegas gritam e se desesperam, Casey observa — não porque é fria, mas porque já viu o horror de perto, e sabe que a salvação, muitas vezes, exige silêncio.

A Dra. Karen Fletcher, interpretada por Betty Buckley, surge como a única ponte entre o delírio e o discurso racional. Sua presença sugere uma tentativa de civilizar o caos, de explicar com palavras o que se desenrola com grunhidos. Mas até essa figura, que poderia simbolizar o triunfo da razão sobre o instinto, acaba tragada pelo próprio limite de sua crença. Ao defender que os múltiplos “eus” de Kevin representam o potencial humano elevado ao paroxismo, ela escancara uma hipótese incômoda: e se a monstruosidade não for exceção, mas possibilidade? “Fragmentado” não flerta com respostas. Ele as sabota. A relação entre médico e paciente aqui é menos terapêutica do que ritualística, como se cada sessão fosse uma tentativa fracassada de exorcismo. E, no fim, é justamente o irracional que vence — não por ser mais forte, mas por ser menos previsível.

Há, sim, momentos em que o filme cede à tentação do grotesco pelo grotesco — insinuações que beiram o exploratório, decisões estéticas que sacrificam complexidade por impacto. Mas mesmo nesses deslizes, há método: o desconforto não é falha, é ferramenta. A trilha sonora de West Dylan Thordson, por exemplo, não pontua a tensão — ela a cava, como se escavasse nervos expostos. O som, aqui, não ilustra, perturba. E o ritmo narrativo, sempre em estado de urgência, simula o funcionamento da mente de Kevin — rápida demais para o entendimento, lenta demais para o alívio. Quando o filme parece caminhar para uma conclusão redentora, Shyamalan frustra novamente o espectador, oferecendo não uma resposta, mas uma extensão do enigma. O universo do diretor se expande, e o que parecia uma história isolada se conecta a outras — não como fan service, mas como ampliação do abismo.

“Fragmentado” não é, portanto, um exercício de redenção estética de um cineasta “em crise”. É um gesto autoral de risco, que rejeita fórmulas e sabota expectativas. Shyamalan não está interessado em restaurar sua reputação; ele está em outra busca, mais incômoda e menos popular: entender o que há por trás da ideia de identidade. Ao retratar a mente como um campo de batalha em que o trauma negocia com o instinto de sobrevivência, o filme desafia o espectador a aceitar que o ser humano talvez não seja uno, coerente ou decifrável — e que há beleza, sim, nessa ruína organizada. O cinema de Shyamalan, enfim, não se rendeu ao fracasso nem renasceu das cinzas. Ele apenas continuou — mais caótico, mais cruel, e, paradoxalmente, mais lúcido.

Filme: Fragmentado
Diretor: M. Night Shyamalan
Ano: 2016
Gênero: Terror/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★