A série que você não viu porque o algoritmo não mostrou — e é melhor que as mais famosas Divulgação. /Netflix

A série que você não viu porque o algoritmo não mostrou — e é melhor que as mais famosas

Séries policiais não morrem, elas se repetem. E é justamente nesse labirinto de fórmulas recicladas que “Dept. Q” abre caminho não com alarde, mas com um desconforto necessário. A série não se apressa em conquistar: ela inquieta, observa e constrói seus silêncios como quem ergue muros, não para afastar o espectador, mas para selecionar os que têm coragem de escalar. Nada aqui é gratuito. Nem a paleta esverdeada que evoca a decomposição de um sistema corroído por omissões, nem o cenário grotesco de um banheiro desativado onde funcionam as investigações, metáfora pungente para aquilo que o Estado preferiu descartar, mas que ainda pulsa e exige ser reexaminado. É nessa latrina institucional que duas figuras se movem: Carl Morck e Akram Salim, não como heróis relutantes, mas como restos humanos tentando não se perder de vez.

O que diferencia essa dupla não é a eficiência, tampouco o carisma. O que há entre eles é um pacto tácito de sobrevivência emocional. Morck, interpretado por Matthew Goode com uma secura quase insuportável, é um homem que desistiu de fingir funcionalidade. Seu sarcasmo não é charme, é ruína. Já Salim, na pele de Alexej Manvelov, carrega no olhar a gravidade de quem já viu demais para se iludir. Ex-militar, refugiado, minoria silenciosa num sistema que o tolera por conveniência, ele não reage: ele escuta. Ambos se encontram num ponto onde a dor não precisa mais ser verbalizada. Há entre eles uma cumplicidade sem ternura, sem o verniz poético, aqui, o afeto é um recurso escasso, economizado a cada cena como quem conta balas num campo de guerra.

Mas o que torna “Dept. Q” mais do que uma série competente é a recusa em fazer concessões ao vício contemporâneo da hiperestimulação. A trama exige entrega. Os diálogos evitam explicações mastigadas; a narrativa se sustenta não nas reviravoltas, mas na erosão lenta das certezas morais. Aos que esperam ritmo frenético ou resolução imediata, a série oferece apenas um espelho embaçado: é preciso paciência para enxergar. E quando finalmente se enxerga, a recompensa vem em forma de angústia, daquelas que não terminam com os créditos. Como em “Mare of Easttown” ou na primeira temporada de “True Detective”, o impacto aqui não é decorativo: é um acerto de contas entre espectador e personagem, entre aquilo que queremos sentir e o que a série permite que sintamos.

As críticas sobre sua “lentidão” ou “excesso de estilo” dizem mais sobre a impaciência de um público moldado por algoritmos do que sobre qualquer falha real. “Dept. Q” não implora atenção, impõe presença. A performance de Leah Byrne como Rose é um capítulo à parte: sem alarde, ela sustenta a espinha emocional da narrativa, relembrando que, por trás de cada pista, há sempre uma ferida aberta. A fotografia claustrofóbica, a direção rigorosa, o som abafado de ambientes em decomposição, tudo converge para uma experiência que não quer apenas entreter, mas deixar marcas. E sim, o final talvez caminhe em direção ao previsível, mas o que importa aqui não é o destino, e sim o arrasto. O que vale é a forma como cada escolha reverbera, como cada ausência pesa, como cada silêncio grita depois do último episódio.

Não é por apelo visual nem por campanha publicitária que a série figura entre as mais vistas da Netflix, é pela força de um universo que não oferece escapatória. Que venha a segunda temporada. O que “Dept. Q” nos prometeu não foi resolução, mas continuidade: um lembrete de que algumas verdades, por mais que tentem ser enterradas, continuam a feder.

Filme: Dept. Q
Diretor: Scott Frank e Chandni Lakhani
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★