A nova pureza: como a ideia de ser moralmente irrepreensível está nos consumindo

A nova pureza: como a ideia de ser moralmente irrepreensível está nos consumindo

Vivemos numa época em que cada palavra, cada gesto ou silêncio querem dizer muito mais do que podemos supor. A moralidade transforma-se a um ritmo que poucos acompanham, e as ideias de bondade e correção passaram de atributos privados a um show, a ser apresentado em praça pública. Ninguém mais aguenta ser perfeito, contudo sublima a vontade de rebelar-se — afinal, é grande o risco de ser cassado. Diferentemente da moral religiosa, a nova moral nem sempre vincula-se a dogmas teológicos. Esse outro regramento sociocultural, um braço do progressismo, impõe normas bem mais draconianas que os Dez Mandamentos, uma vez que nunca se sabe o que é necessário fazer para se estar de acordo com as convenções. Adequação social, hoje, é manifestar com pompa as opiniões milimetricamente estudadas acerca das pautas certas; não dizer nada que melindre quem porventura vá discordar de você — discordar não é uma possibilidade, lembre-se —; gostar do que todos gostam, pensar como todos pensam. Deslizes supostamente tragados pela bruma corrosiva do tempo voltam à superfície: o post de dez anos atrás; a piada machista, etarista ou homofóbica — engraçada, sem dúvida, mas que desafia o cânone da hora —; e, o pior, toques de meio segundo num joelho aparente custam empregos, patrocínio, carreiras, reputações.

A moralidade virou espetáculo. As convicções precisam estar no peito, como medalhas, ou não existem. O que era para ser o compromisso de cada um com valores humanos passa a um jogo narcisista de aparências. Paradoxalmente, à medida que se exige pureza, sobra menos espaço para processar experiências, dores, traumas, erros — e crescer. Tornar-se maduro, prudente, sábio requer dúvida, análise, confissão de culpas — tudo quanto a moral espetaculosa da falsa pureza não admite. Há que se ser, desde o ventre materno, um espelho de perfeição e um modelo de virtude, como se a natureza do homem não fosse o oposto disso. Negar a hipótese mesma do equívoco, como se fôssemos máquinas que sequer hesitam e sabem o modo de proceder em qualquer circunstância, institui uma lógica cruel, que sufoca a urgência do autoconhecer-se e mata a subjetividade. Em nome de uma ética impecável, tornamo-nos cínicos. Rimos menos, ousamos menos, opinamos menos — não opinamos. Em vez de nos transformar em pessoas melhores, a nova pureza faz de nós caricaturas, prontas para condenar os outros, para evitar sermos os próximos a cair em desgraça.

Há, também, um efeito colateral perverso: a incapacidade de distinguir nuanças. No tribunal dos puros, todos os erros são tratados com a mesma severidade. As piadas infelizes têm peso igual aos discursos de ódio. Discordâncias pontuais viram traições imperdoáveis. A complexidade do ser humano é achatada por um binarismo infantil: ou é-se puro, ou se está do lado negro da força. Não há espaço para o erro honesto, o arrependimento franco e sem terceiras intenções, ou a ambivalência. Essa radicalização moral vai destruindo também os vínculos interpessoais. Em vez de fomentar diálogo e entendimento, ela promove caça às bruxas. O outro vira um inimigo moral e mortal — alguém a ser desmascarado, exposto, anulado, suprimido. A meta não é mais debater, mas punir. A punição, por seu turno, não visa a reparar, mas a eliminar o “impuro”. Criamos, assim, um ambiente social baseado no medo, em que até os mais inclinados à tal pureza submetem-se à autocensura por temor de serem mal interpretados. Curiosamente, essa busca obsessiva pela pureza moral não nos tornou mais éticos, e sim mais solitários e injustos. Vive-se cercado de regras sociais implícitas, reescritas de quando em quando, e tem-se mais e mais pânico do que se pode ter em mente. Ninguém mais é espontâneo, tanto menos genuíno ou corajoso. Adoecemos todos.

A saída para esse ciclo malfazejo não está em renegar a importância dos princípios, mas em recuperá-los em sua dimensão humana. Precisamos de uma ética que reconheça a falibilidade, que acolha o erro como parte do caminho, que veja nas contradições um terreno fértil para o crescimento. A nova pureza, ao contrário do que promete, não nos aproxima de um mundo melhor. Ela isola povos inteiros em bolhas de pseudomoralidade, fazendo de nós vigilantes do livre-arbítrio alheio e minando a chance de uma verdadeira e revolucionária metamorfose: a admissão de que todos somos, em maior ou menor grau, imperfeitos. Substituir a busca da pureza pela busca da empatia talvez seja o único caminho possível para nos salvar de nós mesmos. Na era dos julgamentos instantâneos, ser moralmente irrepreensível é ser um prisioneiro — e a liberdade começa quando assumimos que nós também erramos. Só assim voltaremos a ser gente, que — ao contrário da inteligência artificial — erra, e muito.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.