Contos sobre mulheres vulneráveis de Jarid Arraes perdem-se em meio a lacração, militância exagerada e regionalismo afetado

Contos sobre mulheres vulneráveis de Jarid Arraes perdem-se em meio a lacração, militância exagerada e regionalismo afetado

“De onde menos se espera, daí é que não sai nada”. A frase do jornalista Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895–1971), o Barão de Itararé, pioneiro do humor político no Brasil, celebra, com cinismo afiado, uma aptidão em que somos imbatíveis: a arte de dar murro em ponta de faca. “Redemoinho em Dia Quente” (2019), a coletânea de narrativas curtas de Jarid Arraes, faz ecoar a voz da mulher sertaneja, clareia vidas marginalizadas e realça formas de resistência num misto de linguagem popular e identitária — e os problemas não se originam exatamente aí. Os contos de Arraes carecem de acabamento, apuro estético, coesão e estilo, verdadeira praga que acomete trabalhos da novíssima safra de escritores brasileiros, em especial “Jantar Secreto” (2016), de Raphael Montes; “Tudo É Rio” (2014), de Carla Madeira; e “A Cabeça do Santo” (2014), de Socorro Acioli. O livro de Arraes, a propósito, guarda incômodas semelhanças com esse último, a despeito de serem ambas filhas do bravo solo cearense que pariu Alba Valdez (1874–1962) e Rachel de Queiroz (1910–2003), feministas sem título. Hoje, parece que a condição feminina, explorada à náusea por Simone de Beauvoir (1908–1986), vem muito antes de uma nesga qualquer de desígnio e um muito-pouco-quase-nada de valor. Sinal dos tempos? Toda literatura produzida por mulheres será assim doravante?

Redemoinho em Dia Quente
Redemoinho em dia Quente, de Jarid Arraes (‎Alfaguara, 152 páginas)

Arraes pratica uma modalidade de feminismo que nega às próprias mulheres sua autonomia intelectual. Seus contos, ligeiros, parecem estar sempre destinados a aprisionar as personagens femininas em papéis secundários, ainda que elas sejam as protagonistas — ou assim ela supõe. Paira sobre cada história o anexim cunhado por Simone de Beauvoir (1908–1986) em “O Segundo Sexo” (1949), sobre ninguém nascer mulher, mas tornar-se uma, numa tentativa marqueteira de sustentar a ideia de que o gênero é uma construção social. Arraes embarca na mesma jangada torta ao deixar subentendido que as identidades dos tipos que compõe são forçosa e essencialmente moldadas por uma estrutura patriarcal que relega a mulher a uma postura de alteridade e subserviência em relação ao homem e seu trono de “sujeito universal”. Seu objetivo, como o de Beauvoir, era libertar as mulheres de suas amarras culturais, permitindo que o leitor vislumbrasse sua alma livre e até indomável; o que consegue, não obstante, é servir de bucha de canhão para a guerra cultural, batendo na tecla da falsa hegemonia do macho, fazendo da magia do encontro intersexual a eterna retórica do antagonismo. Queiroz, a propósito, era uma das primeiras a contestar “esse tal de feminismo”, porque, lúcida, sensata, sabia reconhecer que os homens tinham-lhe mais condescendência do que entre si e ajudavam-na.

A ideia de que todas as mulheres são vítimas de uma sociedade estruturalmente misógina, defendida surdamente pela autora em “Moto de mulher”, por exemplo, reforça uma visão distorcida da realidade. Esse discurso, longe de fortalecer a autonomia, só faz infantilizar o belo e bravo sexo, insinuando que elas precisam de tutela criteriosa e do singelo aplauso masculino. Movimentos feministas como o de que Arraes deseja ser líder têm sido um ativo poderoso na cultura do cancelamento ao promoverem a exclusão de vozes dissonantes, inclusive de outras mulheres. Camille Paglia e Christina Hoff Sommers sofrem constantes ofensivas de seus pares apenas por pontuarem a urgência de uma revisão e de um mea culpa das pensadoras do feminismo, quase todas mais radicais que os Bukowskis e Hemingways da vida, célebres pela autodepreciação e humanismo, respectivamente. Paglia, que chegou a declarar, vejam só, que “as mulheres sufocam os homens” ao fazê-los serem como elas querem e, então, abandoná-los implacáveis, transformou-se na malvada favorita de Madonna, talvez o que haja de mais simbólico na montanha de lixo cintilante que a indústria cultural produziu, década após década, por causa de uma crítica ao visual da cantora. Paglia, que mais de uma vez levantou odes de louvor apaixonado à Material Girl, mereceu cada chicotada, e entre uma e outra, torço pela briga.

Arraes, a Beauvoir do Cariri, como sua mentora, ignora ou menospreza aspectos biológicos e psíquicos que são a razão e a graça mesma da experiência humana. O apagamento das tantas idiossincrasias do sexo — ou do gênero, como queiram — em nome de uma igualdade absoluta nega o feminino e o masculino em toda a sua confusão e beleza. A filósofa não era nenhuma ingênua e, ainda que tenha desvirtuado o existencialismo de Kierkegaard junto com Sartre, seu companheiro, enveredava pelo pressuposto essencialista ao admitir que a maternidade, para tomar a vivência mais profunda e exclusiva da mulher, não pode ser simplesmente dissolvida por teorias sociais. O feminismo está em cólicas, flagrado em contradições quanto a incluir ou não mulheres trans, batendo de frente com Beauvoir. Em escala bem mais modesta, “Redemoinho em Dia Quente” esforça-se para fazer reverberar essa pauta.

Uma das mais notórias dificuldades da autora na condução da narrativa é decerto a estrutura do livro, descontinuada, dispersa, em fragmentos. Arraes distribui trinta contos em menos de 150 páginas, dando a sensação, consciente ou involuntária, de que tem pressa, muita pressa, uma prova da imaturidade artística que seus 34 anos podem desculpar. “Redemoinho em Dia Quente”, como nem sempre fica tão claro, se passa no Nordeste, e suas protagonistas — isso, sim, salta aos olhos — são mulheres sofridas, abusadas, infelizes. Arraes parece querer expiar um trauma qualquer, uma vez que os enredos quase todos desdobram-se em primeira pessoa, e, previsivelmente, isso leva a uma monotonia semiológica. Uma dada fetichização da pobreza é outro dos elementos a debilitar a singularidade dos tipos acerca dos quais a escritora pretende falar, algo que Arraes se esforça para colocar na conta da distância física e cultural entre o sertão e o Sul Maravilha, mormente no segundo tomo. Não há novidade alguma nisso, como se lê em “A Geografia da Fome” (1946), de Josué de Castro (1908–1973), ainda relevante, e é precisamente nas ocasiões em que a contista abandona o pendor para a militância que o livro cresce. Reunindo humor, nonsense e até alguma crítica social, “Sacola”, não por acaso, é de longe a mais persuasória e espontânea das historietas de “Redemoinho em Dia Quente”. A despeito de ter arrebatado láureas como o prêmio da APCA de Melhor Livro de Contos, Jarid Arraes pode tornar-se uma escritora de fato relevante na combalida cena literária nacional. Basta dar preferência à única coisa que interessa e elaborar uma trama comum, sobre gente comum, permitindo que o leitor remexa e, afinal, enxergue o que está nas entrelinhas. É pedir muito?

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.