Escritores identitários são premiados pelo que representam, não pelo que escrevem

Escritores identitários são premiados pelo que representam, não pelo que escrevem

A piedade nunca foi boa conselheira. Nos últimos anos, um novo critério parece ter se infiltrado silenciosamente nos bastidores dos grandes prêmios literários: o autor deve receber mais importância do que o que é escrito. Numa época em que o simbolismo da representatividade ganha vulto, o que é legítimo, surge também um incômodo: escritores envolvidos com causas identitárias são frequentemente laureados não pela qualidade de suas obras, mas pelo lugar social que supostamente ocupam, pelas lutas que encarnam, pelas pautas que defendem. Polêmica, a ideia aponta para uma nêmesis, constituída do embate entre mérito e reparação, o que deságua em questionamentos. A literatura deve ser um espaço de justiça social ou de excelência artística? Há alguma forma de se conciliar uma e outra sem prejuízo da estética e da reflexão que bons livros sempre fomentam? Fetichizar a igualdade é o grande problema, uma vez que parece que uma publicação só poderá ser validada a depender do nome que conste abaixo do título.

Em muitos casos, a indústria literária passou a funcionar obedecendo a lógica semelhante à do marketing: quem representa minorias vende, gera manchetes, dá entrevistas, encaixa-se no discurso das novas gerações e, portanto, merece o investimento. O mercado editorial aposta em perfis com potencial midiático antes mesmo de ter uma pálida noção do que esses autores pretendem comunicar. O texto acaba em segundo plano se quem escreve é afrodescendente, indígena, transgênero, periférico, refugiado. Esse movimento intenta oferecer uma resposta a décadas de exclusão e silenciamento, e é justo que vozes antes mudas agora conquistem espaço e visibilidade. Como se trata de um processo artificioso, todavia, corre-se o risco de, em vez de combater preconceitos e exclusão, acirrar os ânimos.

Premiações literárias, ao longo da história, nunca foram exatamente neutras. Do Nobel ao Booker Prize, passando pelo Pulitzer e, claro, pelo nosso Jabuti, há sempre um pano de fundo ideológico, político, econômico. O que mudou nos últimos anos foi a intensidade: hoje, não raro, os finalistas são escolhidos conforme as lacunas identitárias a serem preenchidas. Não se procura galardoar o melhor romance, mas o romancista que melhor represente sua “classe”. Deferência vira justiçamento, e celebra-se o livro medíocre, desde que assinado pela pessoa certa. Esse esforço de se consertar o passado só o que faz é distorcer o presente. Há livros de escritores sensíveis e talentosos, oriundos de grupos marginalizados, sem dúvida. O busílis é tornar-se a identidade do autor um salvo-conduto, um escudo que dispensa crítica. Instala-se um clima de intimidação: colocar em xeque a qualidade de um texto é encarado como um ataque à pessoa que o escreveu. Essa blindagem ideológica mata o debate literário. Resta ao crítico uma vexatória autocensura, que o impele a fazer vista grossa a defeitos formais de autores das minorias, sob pena de ser acusado de racista, colonialista, xenófobo, homofóbico. A própria literatura sai perdendo, e também perdem esses escritores, tratados sem o devido rigor, de uma maneira condescendente e paternalista.

Dar visibilidade a autores de fora do cânone é fundamental — o que não significa rebaixar o padrão. A boa literatura é sempre o encontro entre forma e conteúdo. Um autor pode e deve escrever valendo-se de sua experiência, mas o valor literário da obra depende de como essa experiência é transformada em linguagem, ritmo, exegese, dialética. Premiar alguém apenas por sua identidade é, em última instância, uma forma sutil de tutela. Isso perpetua uma forma de segregação simbólica, ainda que disfarçada de empatia, e impede que esses autores sejam julgados pelo que realmente são: escritores, não prosélitos de uma causa. Quem escreve precisa ser recompensado não por representar o que quer que seja, mas pelo estilo, pela técnica, pela relevância do que conta. Se a literatura não for, antes de tudo, uma manifestação artística, caracterizada pela liberdade da forma e do pensamento, o que resta é panfleto. E panfletos sempre tiveram garantido o seu lugar.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.