O fenômeno Mia Couto se fez espuma, mas há uma tristeza branda, quase vexatória, escondida sob o som suave das frases que viram posts compulsivos. Sua escrita — rarefeita, mineral, áspera — é muitas vezes reduzida à música, isolada da intenção original. Há algo de perturbador no fenômeno que dilui sua obra, transformando-a num círculo infinito de aplausos automáticos. Talvez o escritor nem se importe; talvez Mia seja generoso o bastante, sábio o bastante, para deixar que façam dele o que quiserem, até mesmo um escritor que ninguém lê.
Mas será generosidade ou cansaço? Difícil dizer. O fato é que seus livros exigem lentidão, exigem silêncio. E a pressa que a vida digital impõe, rápida e ruidosa, devora a calma que sua literatura pede. Seu estilo metafórico, que oscila entre a oralidade africana e a construção portuguesa, não resiste à pressa do polegar deslizando na tela brilhante. E assim suas palavras são sacrificadas diariamente ao altar das curtidas sem fim, onde leitores fantasmas oferecem ao autor uma espécie de reverência ritualística, sem significado algum além da própria reverência.
Há um cheiro estranho nessa idolatria vazia, um gosto quase amargo que fica após tantos compartilhamentos de frases que ninguém entende plenamente, mas fingem que sim. A sensação de que algo essencial foi roubado do autor, e talvez Mia Couto, no fundo, já não seja mais dono daquilo que escreve. Quem detém a posse da palavra roubada? Quem controla o mito literário transformado em moeda corrente das redes sociais?
Mia Couto agora é um negócio meio mantra, meio guru — nem sei se posso dizer isso —, uma espécie de Osho literário, compartilhado por gente que precisa parecer sensível às 11 da manhã num post de café com filtro do Instagram. Porque sensibilidade é isso agora, não é entender o que você leu, é saber compartilhar a frase certa na hora certa. Sussurrar Mia Couto pra parecer inteligente, pra ganhar aquele like, pra ser profundo como um pires.
Existe um incômodo peculiar ao ver o autor submetido a esse processo de desgaste: a complexidade de seus romances fragmentada em estilhaços, reduzida a pequenos brilhantes vendidos na feira livre do Instagram, uma feira sem começo nem fim. E aí é possível perceber uma espécie de tragédia delicada, silenciosa: Mia Couto virou objeto decorativo, peça de decoração intelectual, meio de afirmação social. Uma estante virtual, onde livros sequer existem em papel ou tinta.
Talvez o erro esteja na própria estrutura da literatura contemporânea, na maneira como livros viraram peças de decoração mental, sinais de identidade rápida, âncoras para conversas breves e superficiais. Mia Couto não escapou disso, nem poderia escapar: ele virou símbolo de uma profundidade que poucos se preocupam em acessar. Virou paradoxo.
Esse paradoxo cresce, alimenta-se de si mesmo, uma cobra que morde a própria cauda. Quanto mais Mia Couto é admirado sem ser lido, mais distante fica sua obra verdadeira daqueles que realmente desejariam entendê-la. A fama, em vez de ser uma ponte, tornou-se um abismo. O culto em torno dele é intenso, quase religioso, mas é exatamente esse fervor desprovido de substância que esconde o vazio central da coisa toda.
O que fazer, então, desse Mia Couto aprisionado na admiração rasa? Ignorar, talvez, deixar que os textos voltem a ser apenas textos, libertá-los desse fardo de significado instantâneo. Quem sabe permitir que Mia Couto retorne ao silêncio discreto, ao isolamento necessário, condição que sempre foi essencial à literatura verdadeira. Mas será possível desfazer esse ruído, essa idolatria instantânea que cresceu demais?
A sensação é de impasse, é de inquietude permanente. E enquanto Mia Couto continua escrevendo, talvez sem saber exatamente para quem, ou sabendo demais, seus leitores de verdade permanecem discretos, quase invisíveis. São leitores como o amigo e jornalista Fabrício Cardoso, que talvez sintam uma espécie de ciúme estranho por verem um autor que apreciam sequestrado, diluído, transformado num amuleto vazio de significado.
Tudo é estranho demais, líquido demais, volátil demais para qualquer conclusão simples. Talvez seja esse o destino da literatura em tempos digitais: viver como fantasma, meio presença, meio ausência, meio frase solta perdida num infinito feed.
E enquanto isso, Mia Couto continua escrevendo. Talvez indiferente ao ruído, talvez resignado ao destino das suas palavras transformadas em ecos dispersos. E talvez seja essa a maior crueldade, a mais irônica das ironias: que o escritor moçambicano continue produzindo literatura, para que ninguém, ou quase ninguém, jamais a compreenda verdadeiramente.
No fundo, talvez ele próprio já não se importe. E talvez seja esse o maior fracasso — e também a maior vitória — de Mia Couto: escrever apenas porque precisa escrever, deixando ao mundo o fardo de entender ou não aquilo que, em essência, nunca poderá ser plenamente explicado.