Para Marcelo Franco, por supuesto
John Fante, com “Pergunte ao Pó”, ganhou leitores, mas perdeu justiça. A popularidade é uma espécie estranha de castigo, fez do livro um clássico menor — mas nunca deu a Bandini o que ele sempre quis. Um lugar digno ao lado dos grandes personagens trágicos da literatura, aquele espaço reservado às cicatrizes, nunca aos sorrisos fáceis. Talvez porque Bandini não tenha a grandeza trágica dos desesperados ou a profundidade simbólica que impressiona críticos de gravata justa.
Bandini começa assim: arrogante como o pior tipo de inocente, jurando que vai escrever como Joyce, que é Joyce renascido num hotel de quinta, papel de carta rasgado, ratos correndo sob o colchão. Arturo inventa histórias, escreve cartas para si mesmo, devolve-as ao remetente com desprezo infantil. Acredita em si mesmo porque ninguém mais acredita, e essa é a essência triste da sua esperança sem eco.
Os críticos passaram longe, preferindo Joyce original, mais limpo, mais sofisticado, mais seguro para teses e mesas-redondas. De Bandini disseram: vulgar, banal, neurótico demais para a eternidade, esquecendo que a eternidade é justamente vulgar, banal e neurótica. Arturo, seu desgraçado, sabia disso, e talvez por isso ele insistisse, gastando o dinheiro enviado pela mãe, aquela pobre mulher distante, em prostitutas que nunca amaria — e que nunca o amariam também, mas que dariam pelo menos um ar de realização imediata, ridícula, mas tangível.

Existe algo profundamente errado e certo nessa fragilidade que poucos entenderam. Não é a pobreza glorificada do escritor maldito francês que bebia absinto, nem o existencialismo metafísico daqueles russos. É só pobreza mesmo, dolorosa e cotidiana como a fome, como laranjas azedas que ardem nas gengivas, como a nota amassada na gaveta, aquela que veio da mãe; algo que é preciso gastar logo, antes que o remorso chegue.
Bandini queria Joyce, sim, queria ser Joyce, queria ser mais do que era; era essa a tragédia pequena que ninguém valorizou. Porque, veja bem, não era só uma questão de sucesso, de editoras, de leitores, era mais um abismo pessoal, aquele que separa a vida que a gente imagina da vida que acontece realmente, e Bandini ficava preso nisso. Um pé atolado na lama do orgulho, outro chutando o vazio do sonho que não vingou. Como você pode culpar alguém por desejar ser mais? Como você pode esquecer alguém por tentar? Mas a crítica esqueceu. A crítica costuma esquecer quem incomoda demais.
Talvez o pecado imperdoável do livro fosse a sinceridade incômoda de Arturo, aquela crueldade ingênua de quem não sabe ser outra coisa, incapaz de transformar a própria pequenez em discurso organizado. Não é romance de formação, não é manifesto de classe, nem alegoria para o mundo pós-guerra; é só a história de um menino perdido demais, convencido demais, sozinho demais. Uma história que escorrega pelos dedos dos críticos e escapa pelas margens dos grandes livros, fica lá, quietinha, repetindo pra ninguém ouvir, que há uma dignidade imensa em sonhar o impossível.
Arturo gritava ao vento, sonhava em voz alta, tentava ser Joyce como quem tenta esquecer uma doença incurável, como quem arranca dentes com laranja barata, ácida, amarga. Como quem se irrita com a luz perfeita de Los Angeles, enganosa, brilhante demais pra miséria de verdade. No fundo, talvez ele tivesse razão: ser Joyce era só uma metáfora ruim, um sonho deslocado. Ele nunca seria Joyce, não queria ser Joyce. Queria apenas fugir da fome, das ruas implacáveis, da vergonha do fracasso constante. Um fracasso que ninguém gosta de admirar muito tempo.
O erro da crítica foi justamente esse: preferiram ignorar o fracasso pequeno, preferiram esquecer que a ambição fracassada é a única realidade da maioria, que para cada Joyce há milhares de Arturos, tentando inutilmente. Preferiram esquecer que a literatura também é feita de fragilidade, da tentativa ridícula e heroica de ser mais do que se pode. E nisso, Arturo é imbatível.
Mas é um sucesso estranho o de Bandini, porque é um sucesso escondido, uma popularidade secreta, uma fama sem medalhas. O livro vende, sim, é amado em silêncio, quase envergonhadamente. É preciso ser Arturo para entender Arturo, mas ninguém admite muito isso. Afinal, ninguém quer admitir que é Bandini, que gasta com prostituta o dinheiro da mãe, que sente vergonha demais para escrever, orgulho demais para parar, fome demais para não comer laranja com gosto de sangue.
Fante escreveu sem medo do ridículo, o que por si só deveria garantir-lhe um lugar melhor entre os grandes escritores. Deveria, mas não garantiu. Ainda há quem torça o nariz, dizendo que a obra é juvenil, desesperada, neurótica. E o pior é que estão certos. A obra é tudo isso. Mas é exatamente por isso que deveria ser respeitada. Não é fácil olhar para o espelho de Arturo Bandini, ver ali a própria insuficiência, o sonho em carne viva, a esperança teimosa que não sabe a hora de parar.
Há algo essencialmente literário nessa contradição permanente, nesse paradoxo que não resolve nem acalma. Algo que lembra Joyce sim, mas não o Joyce das páginas, não o Joyce das teses acadêmicas; um Joyce menor, mais humano, menos seguro, menos genial. Um Joyce do cotidiano infeliz, da pequena angústia que não cabe em grandes análises.
Arturo Bandini talvez fosse Joyce, no fim das contas, sem nunca ter percebido. Um Joyce diluído, um Joyce falhado, um Joyce com gosto amargo de fruta podre e fome nunca saciada. Mas ninguém percebeu. Nem Bandini, nem a crítica. É por isso que “Pergunte ao Pó” permanece injustiçado. Porque talvez, no fundo, a gente não goste muito daquilo que nos lembra do fracasso que somos, ou poderíamos ter sido. O sucesso verdadeiro desse livro é lembrar a todos, silenciosamente, que nem todo mundo pode ser Joyce. Nem todo mundo deve ser. Nem todo mundo precisa. Mas que insistir em ser, de qualquer jeito, é a maior, mais dolorida e mais digna literatura possível.