Difícil dizer quando a garrafa começa e onde termina a máquina. Difícil, também, separar o personagem da ressaca — porque tudo nele era respiração suja, e isso incluía a própria obra. E, no entanto, os poemas — você já leu “Bluebird”? Já leu em silêncio, tarde da noite, tentando não chorar como um idiota? Porque tem um passarinho no peito dele, ele escreve, e ele o deixa cantar só às vezes, de madrugada. Isso não é gênio, então o quê? Um erro bem feito?
Ele se odiava. Isso é parte da equação. E odiava os outros, o que ajuda. Quem não odeia um pouco, mesmo sem admitir? Bukowski dizia asco com a boca cheia. Era grosseiro, sujo, malcheiroso. E ainda assim, fazia com que os palavrões parecessem palavras de amor. Ou talvez fossem. Talvez ele só tivesse desaprendido o jeito certo de amar. Ou nunca tivesse aprendido.
Claro que há mulheres demais deitadas nos colchões podres dos contos. Mas repare: quase sempre são elas que vão embora. Ele fica, escrevendo, sozinho, fodido e escrevendo. Há misoginia? Sim, às vezes brutal. E há algo pior ainda: confissão sem vergonha. Ele não dizia que amava as mulheres. Dizia que precisava delas. Que batia nelas. Que tinha nojo. Que voltava. Que perdia. Que pedia dinheiro emprestado. A miséria moral ali nunca vinha embalada em laço de crítica social — era só miséria mesmo.
E ainda assim — e aqui mora o espinho — ele escrevia como poucos. Não é o vocabulário, nunca foi. Era o ritmo. Bukowski não escrevia com palavras, escrevia com ruído. Uma espécie de jazz sórdido, um solo de trompete cuspido num banheiro público às três da manhã. Você não lê Bukowski, você se afoga nele.
Ele não pediu desculpas. Nem quando escreveu sobre espancar uma mulher com uma escova de cabelo. Nem quando enfiava personagens femininas em sacos de plástico e dizia “arte”. Nem quando transformava prostituição em ornamento narrativo. Mas pedir desculpas não era parte do ofício, dizia ele. “Se você quer justiça, vá ao tribunal. Aqui é literatura.”
Mas será? Talvez seja só a desculpa de sempre. Um velho branco bêbado escondendo crueldade sob o manto da autenticidade. Só que… não é isso que fazem todos os escritores — esconder, fingir, sangrar bonito? A diferença é que Bukowski não escondia. Ele escancarava. E isso incomoda. Porque a maioria prefere a hipocrisia elegante à brutalidade honesta. Mas será que honestidade exime culpa?
Ele não era Kafka. Não era Faulkner. Não era Baldwin. E, mesmo assim, do seu jeito — vulgar, cansado, desidratado — escreveu o horror moderno como poucos. O horror de acordar cedo para um emprego medíocre. O horror de amar alguém que não liga. O horror de ter talento e usá-lo mal. E pior: o horror de não ter talento nenhum e continuar escrevendo assim mesmo.
Era um gênio? Não. Gênio não é uma palavra justa para alguém que se recusava a fazer esforço. Mas havia momentos — pequenos, escondidos entre porres e estupros literários — em que algo nele se iluminava. Um verso. Um final de conto. Um insulto tão certeiro que virava oração. E nesses momentos, sim, parecia que Deus cuspia nele alguma centelha, entre um gole e outro.
Mas ele era um canalha. E talvez fosse isso que o tornasse necessário. Um canalha com método. Um ordinário com ritmo. Ele entendia a linguagem da sarjeta, a sinfonia do fracasso. Transformava o cotidiano em espetáculo: a barata esmagada, a fila do correio, a mulher que grita, o vizinho que morre, o rato no fogão. Tudo isso virava literatura, não porque ele nobilitasse o feio, mas porque recusava o bonito.
E aí está o paradoxo: Bukowski não queria ser amado. Mas queria ser lido. Como se dissesse: “me odeie, mas não me ignore”. E conseguiu. Décadas depois, continua ali, em destaque na prateleira errada das livrarias — entre autoajuda e literatura marginal. Como se fosse uma confusão de marketing. Mas ele sabia: era literatura de verdade. Só que suja. Como um banheiro de bar com grafites que rimam.
Os que o defendem citam a coerência. Nunca quis ser exemplo. Nunca mentiu. Nunca se vendeu (embora tenha se repetido ad nauseam nos livros finais). Os que o acusam, com razão, apontam a misoginia, o narcisismo, a pobreza estética das narrativas. Só que Bukowski não queria ser Nabokov. Não queria construir mundos. Ele queria sobreviver. A escrita era a ressaca da alma.
E, no entanto, quantos leitores se encontraram nos versos dele? Quantos homens e mulheres — e sobretudo os não representados — viram nas palavras bêbadas de Hank uma forma de respiro? Porque Bukowski não escreve sobre heróis. Escreve sobre fracassados. E o mundo está cheio deles. Nós.
Às vezes, ele acertava em cheio. Como em “Post Office”, aquele diário de um homem esmagado pelo tédio do serviço público. Ou em “Factotum”, no qual o protagonista afunda, levanta, afunda de novo. Há humor. Um humor que fede a vômito, mas humor. E há estilo, mesmo que se recuse a ser chamado assim. Um estilo de quem escreve como quem briga.
Mas talvez ele tivesse morrido cedo demais para ser cancelado. Ou tarde demais para ser salvo. O século 21 engole Bukowski com culpa. Lê escondido. Cita pouco. Evita trechos. Mas não o apaga. Porque há nele algo que não passa. Uma tristeza sem moral. Um cansaço sem remédio. Uma humanidade que fede, mas que é nossa.
Bukowski não foi gênio. Mas também não foi só um velho bêbado. Foi outra coisa. Uma espécie de espelho rachado, onde nos vemos feios demais. Um cronista do fim da linha. Um homem que escreveu até o fim como quem soca o próprio estômago.
E, no final, talvez reste isso: uma frase. Um único verso perdido num livro ruim. Um poema sussurrado com vergonha às três da manhã. E esse verso, esse único verso — às vezes — vale por toda a sujeira. Porque ali, ali mesmo, há beleza. E ela vem manchada, sim, mas ainda pulsa.