Durante anos, críticos, leitores e aspirantes a iluminados se curvaram diante do texto como quem assiste a um eclipse: olhos semicerrados, medo de encarar direto. “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, virou um monumento — não por consenso, mas por sobrevivência. Questioná-lo é quase um tabu. Como se admitir que a leitura cansa fosse um atestado de ignorância. Como se alguém realmente estivesse preparado para enfrentar um monólogo de mais de cem páginas onde a ação é uma barata e o clímax, um colapso do pronome.
Mas talvez o incômodo seja justamente esse: o texto não quer agradar. Não quer seduzir, não quer conduzir. Quer aprisionar. Quer sussurrar durante horas no ouvido do leitor, até que ele se renda e aceite estar em cárcere — de linguagem, de silêncio, de sentido. G.H., a protagonista que não tem nome além das letras, é menos uma personagem do que um estado mental. Ela pensa com os ossos. Pensa como quem mastiga a própria infância.

A prosa avança como areia movediça. Não há pausa segura. Parágrafos longos como respirações interrompidas. Frases que funcionam como armadilhas: parecem explicativas, mas apenas viram mais fundo o parafuso da dúvida. Clarice escreve com bisturi — mas um bisturi enferrujado, que não limpa a ferida, apenas expõe a carne crua da consciência. O verbo não se conjuga para informar, mas para implodir. Para deixar restos.
E há a barata. Figura grotesca, bíblica, alegórica, literal. Esmagada, e ainda assim protagonista. Ela aparece cedo, mas fica. Ronda cada parágrafo como um corpo não sepultado. Como um reflexo do que há de mais inominável no humano. O nojo, o espanto, a repulsa — tudo vira matéria. E o pensamento de G.H. se transforma num organismo doente, febril, obsessivo. A cada página, uma pergunta muda: quem come quem?
A leitura se torna pacto. Mas não um pacto de prazer. Um pacto de rendição. Quem entra nesse livro aceita ser refém. É a tal síndrome. O leitor que, diante do cativeiro narrativo, começa a defender seu sequestrador. Começa a ver beleza na opressão do texto, começa a encontrar sentido na ausência dele. E quando acha que vai escapar, Clarice o chama de volta. Como se dissesse: não tão rápido. Ainda tem mais ruído, mais dissolução, mais desespero sussurrado em voz alta.
Porque o livro é um quarto fechado. Não se sai ileso. Não se sai limpo. É possível que nem se saia. A prosa trabalha como ácido sobre a forma. Vai dissolvendo a ideia de personagem, de trama, de lógica. E o que sobra não é pouco. Sobra uma mulher. Sobra uma barata. Sobra um grito que não se escreve. Sobra uma sensação de ter lido algo que talvez não seja um romance, nem um ensaio, nem um diário — mas um sintoma.
Clarice construiu uma armadilha perfeita. Uma armadilha que se alimenta da vaidade alheia. Quem ousa dizer que não gostou, que não entendeu, que teve sono, imediatamente se sente tolo. E é aí que mora a genialidade do sequestro. O livro transforma o desconforto em aura. E a aura, em reverência. Não porque seja impossível. Mas porque é difícil demais admitir que talvez o desconforto seja maior do que o impacto. Que talvez a experiência não tenha sido iluminadora, mas apenas exaustiva.
Mas mesmo isso — mesmo essa suspeita amarga — é parte do jogo. Porque Clarice não queria ser simpática. Queria ser verdadeira. E a verdade, às vezes, é uma parede branca, um quarto vazio e uma mulher em colapso diante de um inseto. A verdade, às vezes, é o silêncio que vem depois da última página.
E se alguém disser que terminou a leitura com clareza, serenidade e um sorriso de admiração… desconfie. Pode ser que a síndrome esteja ativa. Ou pior: que tenha se tornado crônica.