Por que a Flip virou o Lollapalooza do ego literário

Por que a Flip virou o Lollapalooza do ego literário

Há duas décadas, desde sua criação em 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) consolidou-se como um dos principais encontros literários do Brasil e da América Latina. Idealizada pela editora inglesa Liz Calder, a Flip surgiu com o objetivo de juntar escritores, leitores e o pensamento crítico. Mas com o passar dos anos, o que era um espaço de celebração da literatura tornou-se, quase sempre, uma passarela de vaidades. O que era uma iniciativa antes voltada para o conteúdo, a troca e a construção do saber, hoje parece cada vez mais dominada por disputas simbólicas, exibicionismo autopromocional e demonstrações de egos fora de controle. Diante de tal cenário, cabe a pergunta, reptadora: a Flip teria se transformado num Lollapalooza, num desfile de literatos tolos e egocêntricos? A Flip é agora um convescote onde a literatura, como a música nos eventos nababescos patrocinados pelas gigantes do capitalismo do mundo todo, acaba por tornar-se coadjuvante frente à inexorável urgência de prestígio e publicidade gratuita?

No princípio, a Flip tinha qualquer coisa de artesanal. Paraty, cidadezinha de belezas naturais fundada na Baía da Ilha Grande ainda no Brasil Colônia, parecia o cenário perfeito para a imersão na leitura e nos diálogos intelectuais. Os primeiros anos uniram gente da relevância artística de Don DeLillo, Julian Barnes, Milton Hatoum e João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) — volto a ele depois — a uma audiência feita majoritariamente de leitores apaixonados, acadêmicos e outros escritores. Com o tempo, no entanto, a Flip cresceu, em números, em orçamento, em público, em visibilidade. O cerco midiático aumentou, celebridades aderiram e a atenção foi deslocando-se do conteúdo das mesas para o “quem está na plateia”, “quem foi convidado”, “quem apareceu”. A Flip encheu-se de uma galeria de personagens sôfregos por uma vitrine e suas famigeradas selfies a espocar inclementes, o que seria natural e, quiçá, desejável, não fosse terem-se perdido o ethos, o caráter, os valores morais, a essência mesma de seu desígnio primeiro. Em vez de arte pela arte, de literatura pela literatura, o que se tem cada vez mais é a literatura servindo a ambições e devaneios pessoais.

O escritor de hoje não pode mais apenas escrever: ele precisa performar. Precisa dar entrevistas, estar nas redes sociais, lançar livros com presença de influenciadores, ser “atuante” no debate público — mesmo quando não há nada de literário em tal debate. Escritores viraram astros pop, e na Flip isso se manifesta de forma particularmente equivocada. Autores batem-se por espaço não só na programação oficial, como também em círculos paralelos, nos cafés, nos barcos. A curadoria virou alvo de críticas justas e insinuações maldosas, porém fundamentadas. Por que fulano foi convidado e sicrano não? Terá alguma coisa a ver com o número de seguidores? Com o engajamento político? Como num show, no qual carisma e presença de palco são imprescindíveis para a completa fruição do que é visto, quem aceita comparecer à Flip deve também atestar sua capacidade de entreter. A palavra rende-se à persona, o raciocínio dá lugar ao espetáculo. Essa celebrização do solitário ofício da escrita é já uma realidade para muitos, mas em Paraty o chamado hype, uma tendência qualquer que, por um motivo quase sobrenatural, faz de certos livros e seus responsáveis um objeto de culto e desejo, toma proporções insanas.

Em 2004, João Ubaldo (!) desistiu de viajar ao balneário do extremo sul fluminense porque seu nome não aparecia na divulgação oficial da Flip (!!!), e embora tenha recapitulado sete anos mais tarde, não furtou-se a dizer com todas as letras que “discutir literatura é chato como falar de hóquei sobre patins”. O baiano também não soube recomendar nenhum dos escritores convidados de 2011 porque não os havia lido. Num só golpe, o autor de “O Sorriso do Lagarto” (1989) e de “Sargento Getúlio” (1971), injustamente aclamado, segundo ele, apontou dois grandes problemas da Flip. Década e meia depois, cabe a este modesto ensaísta o triste diagnóstico: a Flip é, ainda mais do que antes, uma festa pobre para inglês ver.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.