O conceito de cancelamento tornou-se um dos fenômenos sociais mais discutidos no século 21. Trata-se, em linhas gerais, da prática de responsabilizar publicamente figuras de destaque — especialmente nas redes sociais — por comportamentos considerados ofensivos, discriminatórios ou moralmente inaceitáveis. Essa nova forma de regulação da cultura e dos costumes é especialmente sensível às pautas contemporâneas de justiça social, igualdade étnica e de gênero e respeito às minorias. Entretanto, ao aplicarmos um olhar retrospectivo sobre grandes nomes da literatura mundial, surgem questões instigantes. Quantos desses gênios resistiriam ao crivo dos fundamentos morais de hoje? Como alguns dos mais renomados escritores da História seriam recebidos hoje, à luz das atitudes e visões que manifestaram em sua época — muitas vezes impregnadas de racismo, sexismo, homofobia, colonialismo e elitismo? Longe de negar suas contribuições artísticas, deve-se propor um diálogo honesto entre herança artística e intelectual e responsabilidade histórica.
Grandes escritores, como todos os seres humanos, foram produtos de seu tempo, mas também foram formadores de imaginários. E, como tal, suas obras não são neutras. Elas ajudam a construir as bases sobre as quais comportamentos opressivos foram — e ainda são — sustentados. A cultura do cancelamento, embora em muitas circunstâncias impulsiva ou desproporcional, surge do esforço legítimo quanto a reparar desigualdades históricas e construir um panorama cultural mais justo. Não se trata de jogar fora as obras desses autores, mas de lê-las com senso crítico, colocando-as em diálogo com os valores do nosso tempo. Em última análise, reconhecer as falhas dos gênios literários é um sinal de amadurecimento coletivo. Significa que estamos mais conscientes dos impactos das palavras e das ideias. Significa, também, que podemos construir um cânone literário mais plural, inclusivo e ético, valorizando a arte, mas atento ao custo humano que muitas vezes ela perpetrou.
Nove escritores do século passado figuram na nossa lista como gênios cuja pena explicitou sentimentos ignóbeis, uma extensão do que foram em pessoa ou, pior, uma cortina de fumaça colorida por trás da qual escondiam crimes revelados apenas por eles mesmos muitos anos mais tarde, depois de mortos, casos de H.P. Lovecraft (1890-1937), um dos pais do horror moderno, e William Golding (1911-1993), vencedor do Nobel de Literatura de 1983, respectivamente.

Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) é reconhecido como um dos pais do horror moderno. Criador de uma mitologia complexa, povoada por criaturas cósmicas e atmosferas de paranoia existencial, Lovecraft teve influência direta em nomes como Stephen King e Alan Moore. No entanto, suas visões abertamente racistas são objeto de crescente repúdio. Lovecraft não apenas demonstrava aversão a povos não-brancos, como chegou a escrever poemas e cartas em que exaltava a supremacia branca e denegria judeus, negros e imigrantes. Seu poema “Sobre a Criação dos Negros” (1912) é apenas um dos registros chocantes de sua abjeta ideologia. Embora seu pensamento tenha evoluído um pouco nos últimos anos de vida, a marca do racismo é indelével. Hoje, é difícil imaginar Lovecraft capaz de manter uma carreira sem que sofresse intensa crítica e oposição ferrenha. Debates sobre a renomeação de prêmios literários — como o World Fantasy Award, que exibia seu busto — demonstram o quanto seu legado já vem sendo submetido a revisões sob o olhar contemporâneo.

Ezra Pound (1885-1972), poeta modernista de peso, exerceu enorme influência na literatura anglo-americana do século 20. No entanto, suas convicções políticas seriam, hoje, motivo de cancelamento implacável. Pound foi simpatizante do fascismo italiano, tendo apoiado abertamente Benito Mussolini (1883-1945) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Além disso, proferiu discursos antissemitas pelo rádio durante o conflito, chegando a afirmar que os judeus seriam responsáveis pela guerra e pela corrupção do sistema financeiro. Preso por traição após a guerra, Pound foi internado por doze anos num hospital psiquiátrico. Ainda assim, sua obra continuou a ser celebrada por muitos críticos literários. Num contexto atual, em que falas antissemitas podem e devem gerar consequências imediatas, é plausível imaginar que sua reputação enfrentaria duras sanções culturais e jurídicas.

Virginia Woolf (1882-1941) é um dos nomes mais reverenciados da literatura inglesa e uma pioneira do feminismo moderno. No entanto, algumas de suas opiniões revelam um elitismo que entraria em atrito com os ideais de inclusão e igualdade social atuais. Em seus diários e cartas, Woolf demonstrava desprezo pelas classes trabalhadoras, chegando a zombar dos modos de falar e agir de empregados domésticos. Embora defensora dos direitos das mulheres, sua perspectiva frequentemente ignorava as pobres, negras ou colonizadas. O feminismo de Woolf é, portanto, seletivo, bastante limitado ao recorte de sua classe e cor. Hoje, isso provavelmente a colocaria no centro de discussões sobre “feminismo branco” e exclusão interseccional.

No Brasil, José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948) é figura incontornável da literatura infantil. Autor de “Sítio do Picapau Amarelo”, série de 23 volumes de literatura fantástica, publicados entre 1920 e 1947, Monteiro Lobato escreveu obras que marcaram gerações. Contudo, suas representações racistas de personagens negros, em especial Tia Nastácia, têm sido objeto de duras críticas. Em suas cartas, Lobato chegou a manifestar apoio ao movimento eugenista, sugerindo que o “branqueamento” da população seria desejável para o país. O debate em torno da permanência de suas obras no currículo escolar é um exemplo claro da tensão entre legado literário e responsabilidade histórica. Embora não haja consenso sobre sua exclusão, dificilmente Monteiro Lobato passaria incólume por uma cultura de rigorosa prestação de contas como a atual.

Pablo Neruda (1904-1973), prêmio Nobel e poeta do amor e da luta política, é celebrado em todo o mundo. Mas seu próprio relato de um estupro cometido durante seu período como cônsul no Ceilão (atual Sri Lanka), registrado em sua autobiografia, hoje seria motivo de forte indignação e potencial cancelamento. Além disso, Neruda demonstrava um padrão machista em muitos de seus relacionamentos, abandonando a filha doente e mantendo relações com base em poder e controle. Essas atitudes geram desconforto crescente entre leitores contemporâneos, em especial dentro dos círculos feministas e acadêmicos da América Latina.

Ernest Hemingway (1899-1961) é um dos ícones da literatura norte-americana do século 20. No entanto, sua persona pública e seus escritos revelam uma masculinidade tóxica que seria duramente criticada hoje. Hemingway cultivava uma imagem de virilidade extrema e desprezava tudo que considerava “fraco” ou “feminino”. Muitos de seus comentários sobre mulheres e gays demonstram desprezo e repulsa. Seu sexismo transparece em personagens femininas estereotipadas, enquanto a homofobia aparece em cartas e atitudes pessoais. Embora admirado por seu estilo seco e poderoso, sua figura estaria hoje envolta em polêmicas constantes.

William Golding (1911-1993) é outro nome que teria sua reputação seriamente comprometida hoje. Em seus diários, publicados postumamente, o vencedor do Nobel de Literatura de 1983 confessa ter tentado estuprar uma colega de escola quando era jovem. Também revela uma visão sombria e misógina sobre as mulheres, as quais via como instáveis e manipuladoras. Num ambiente cultural em que relatos de abuso são levados a sério — especialmente à luz do movimento #MeToo —, Golding provavelmente seria retirado de currículos escolares e de listas de leitura obrigatória.

Rudyard Kipling (1865-1936), autor de ”O Livro da Selva“ (1894) e ganhador do Prêmio Nobel de 1907, foi um defensor explícito do imperialismo britânico. Seu poema “O Fardo do Homem Branco” (1899) é um exemplo claro da mentalidade colonialista, justificando a dominação de povos não-europeus como uma “missão civilizatória”. Kipling via os colonizados como seres inferiores, necessitados da tutela do “homem branco”. Sua obra é, hoje, amplamente reavaliada por estudiosos pós-coloniais e ativistas, que veem nela uma expressão ideológica de jugo e desumanização. É provável que, no atual ambiente, Kipling sofresse campanhas de boicote e reinterpretação de suas obras.

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), embora reconhecido como um dos grandes inovadores da literatura do século 20, decerto seria cancelado por sua visão de mundo abertamente segregacionista. Seus panfletos antissemitas, publicados na década de 1930, revelam um discurso de ódio explícito que hoje seria inaceitável. Céline apoiou ideias próximas ao fascismo e colaborou com o Regime de Vichy, o que mancharia irremediavelmente sua imagem pública. Numa era de crescente sensibilidade às questões dos direitos humanos e justiça social, tais atitudes engendrariam consequências graves para sua reputação. Além disso, insinuações misantrópicas e por vezes racistas em seus textos vão de encontro com os valores contemporâneos. Embora sua prosa inovadora e estilo revolucionário fossem reconhecidos, a figura do autor tornar-se-ia alvo de rumorosos debates. A separação entre obra e autor seria questionada. Ele provavelmente perderia editoras, apoio institucional e espaço na mídia. Céline encarnaria o dilema moderno entre genialidade literária e responsabilidade ética.