Havia algo de insuportavelmente belo em como o caos era enquadrado. As luzes cortando a favela como cicatrizes elétricas, a câmera nervosa perseguindo corpos que já nasciam fugindo de algo — tudo isso emoldurado com um virtuosismo quase cruel. “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” não nasceram para pedir desculpas. Eram filmes que não apenas mostravam a ferida — cravavam a faca no osso. E, por isso mesmo, hoje, talvez não passassem do trailer sem que a primeira avalanche moral caísse sobre eles.
A pergunta não é se seriam cancelados, mas como e por quem. Cancelamento, afinal, já não é um gesto ideológico puro, mas um mecanismo emocional — uma indignação que se organiza em hashtags, uma vergonha coletiva que pede sangue com emoji de fogo. Se a estética da violência era, em 2002 e 2007, um grito artístico legítimo contra o abismo da realidade brasileira, hoje esse grito seria considerado dissonante, inconveniente ou — pior — criminosamente insensível.
“Cidade de Deus” não mentiu. Mas pintou a dor com tintas tão potentes que virou objeto de fetiche. O tiro, o sangue, o crack, o garoto armado — tudo isso foi consumido mundo afora como um espetáculo de uma selvageria exótica. Não à toa, o filme virou sucesso internacional: porque a miséria bem filmada ainda é exportável. E esse talvez fosse o primeiro ponto de ataque contemporâneo. Em tempos de autorias vigiadas e representações políticas, a crítica viria rápido: por que um homem branco da zona sul, Fernando Meirelles, pode contar a história de Zé Pequeno, mas um garoto da favela mal tem acesso à câmera?
A autoria virou campo minado. E talvez com razão. Porque hoje não basta narrar o subúrbio — é preciso ser do subúrbio. É preciso ter cicatrizes reais para contar as cicatrizes ficcionais. A ideia de lugar de fala se tornou mais do que um conceito: tornou-se um alvará ético. E, ainda que isso corrija desigualdades históricas de representação, há uma consequência silenciosa: histórias urgentes passam a depender da legitimidade biográfica de quem as conta. O problema é que “Cidade de Deus” não foi contada de dentro, mas de fora. Com empatia, sim, mas de fora.
Já “Tropa de Elite” é um monstro de outra natureza. Seu protagonista, o Capitão Nascimento, não foi apenas o retrato de uma máquina opressora — tornou-se símbolo dela. Gritado em memes, exaltado em frases de para-choque, interpretado como herói por quem viu ali a legitimação da violência como solução. O filme foi abraçado por uma direita sedenta por ordem e desprezo. E esse abraço deformou seu sentido. Não por culpa do roteiro, que expunha o colapso de um sistema doente, mas por culpa da fome ideológica de quem vê na farda não um uniforme, mas um ídolo.
Em 2025, Nascimento não teria trégua. Seria o alvo de editoriais inflamados, denúncias públicas, acusações de glorificação da tortura. Haveria campanhas pedindo que o filme fosse retirado das plataformas, boicotes a Wagner Moura, ameaças ao diretor. A catarse do personagem, que muitos leram como crítica à desumanização do policial, seria hoje interpretada como manual de opressão. A distância entre arte e interpretação nunca foi tão curta — e tão ruidosa.
Mas talvez o maior problema de ambos os filmes não seja o que mostram, mas como mostram. A violência em “Cidade de Deus” tem ritmo, tem trilha sonora, tem um design de som tão meticulosamente cruel que o tiro quase dança com a música. Em “Tropa de Elite”, a tortura é encenada com uma frontalidade quase operística, como se a barbárie tivesse coreografia. E isso incomoda. Porque, hoje, tudo o que é bem feito — quando trata de tragédia — é suspeito de estetização. Há quem prefira o documentário cru, sem poesia, como se a arte da dor tivesse que ser sempre feia para ser legítima.
A arte, no entanto, não é neutra. Nunca foi. Ela escolhe onde mirar, como montar, de que ângulo narrar. E, nesses dois filmes, o que se vê é uma tentativa desesperada de entender o Brasil por suas fraturas. Não há condescendência. Não há lição de moral. Há, sim, um mergulho nas trevas — e talvez o grande pecado deles hoje seja justamente esse: terem feito isso sem pedir desculpas.
Se fossem lançados agora, “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus” talvez não resistissem ao tribunal digital. Seriam mutilados em vídeos de um minuto, acusados em threads inflamadas, rasgados em editoriais furiosos. Seriam criticados por quem exige posicionamento e punidos por quem odeia nuance. Seriam, enfim, julgados não como obras, mas como declarações públicas de intenções.
E, no entanto, sobreviveriam. Não por imunidade, mas por insistência. Porque há algo neles que escapa à patrulha: uma verdade que não se pode apagar com legenda. A favela continua lá. A polícia continua lá. O medo, o tráfico, a ausência do Estado — tudo isso ainda está nas ruas, como um roteiro que insiste em não mudar.
Se seriam cancelados? Talvez sim. Mas seriam cancelados como são canceladas as feridas que insistem em não cicatrizar: por incômodo, por impotência, por raiva de reconhecer que o Brasil ainda está mais perto da tela do que se gostaria de admitir.