Autor: Ruth Borges

Minhas tatuagens não definem meu caráter, minhas atitudes sim

Minhas tatuagens não definem meu caráter, minhas atitudes sim

O corpo é objeto que assume caráter subjetivo apenas na pós-modernidade. Aos poucos, esse corpo, em constante metamorfose, tornou-se um lugar de inscrição subjetiva. As tatuagens não são um sintoma da modernidade. Múmias do antigo Egito, tribos, clãs, judeus numerados, marinheiros solitários, presidiários, marginais, artistas de circo e os mais libertários — entre ritos, mortos, julgados e feridos, toda essa gente fora tatuada.

‘Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu’

‘Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu’

Olhar através do buraco da fechadura parece um tanto excitante. Há em nós um espectador “voyeur”, passeando pelas inúmeras janelas indiscretas da internet e das relações cotidianas. Vídeos vazados, nudes, batida de carro, briga de vizinho — dramaturgia sedutora e instigante estimulando a mirada. Para alguns, não há diversão maior do que a novela da vida alheia. É inegável: observar o outro secretamente é tão provocante quanto acompanhar a dança que o olhar da câmera do Hitchcock executa.

“Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”

“Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”

Repare bem ao redor. Maquiagem vencida. Retrato empoeirado. Bijuterias oxidadas. Louça de anteontem. Esmalte descascado. Copo com resto de café. As horas se esqueceram de seguir no cuco enguiçado. Por fora, o caos está posto, mas e aí dentro, quais os lixos que te carregam? Ou, quais são as quinquilharias colecionadas? Não, não. Ninguém precisa de tanto entulho no coração. Perdas não passadas tornam-se pedras. Pedregulhos! Enormes! Tanto que interrompem a chegada de um novo ciclo.

Se for tarde demais, a gente aproveita a madrugada

Se for tarde demais, a gente aproveita a madrugada

Quem vive no passado anda de mãos dadas com a melancolia. Acaba por morar próximo de um vizinho carrasco, cujo nome é o ressentimento. Não há perdão nem à própria história: “aquilo que era vida”, “eu era feliz e não sabia”, “se eu tivesse feito assim, tudo teria sido diferente”. Tortura e sofreguidão, servidos na bandeja dos ressentidos! Entretanto, quem vive no amanhã é amigo próximo da ansiedade. Sempre à espera. Sempre à espreita. E toda essa agitação faz o futuro não chegar.

Todo fim é um começo, a gente só não sabe disso naquele momento

Todo fim é um começo, a gente só não sabe disso naquele momento

cordão umbilical cortado, o parto, a fala, o passo. Tudo é separação. A morte, a saída da casa dos pais, mudar de cidade, de país, de visual, de emprego, escolher entre o sim ou o não. Pra lá ou pra cá? Trocamos de sonho, de ideia, mudamos de casa, de plano. Tudo é despedida. Ah, quantos “adeus” são necessários para que nos tornemos gente grande? Perdi as contas de quantas vezes nessa vida eu já me despedi de mim. Nem todos os planos são infalíveis. Nem tudo é chegada ou espera. A gente vai se recortando, aparando as arestas, dando adeus aos nossos restos para dar forma a novos sonhos.