Há séries que exploram a decadência de mundos em colapso, e há aquelas que se interessam por algo ainda mais radical: a decomposição do que sobrevive. A segunda temporada de “The Last of Us”, da HBO, recusa o consolo da reconstrução. Ela se debruça sobre o que persiste após a salvação — não de um povo, mas de uma única pessoa. A decisão de Joel, ao impedir que Ellie fosse sacrificada por uma cura, reconfigurou o eixo moral da narrativa. Agora, cinco anos depois, em um mundo que insiste em fingir estabilidade na comunidade de Jackson, a série se detém no abismo íntimo entre pai e filha, mentor e aprendiz, salvador e vítima. Sob a superfície de uma rotina funcional, pulsa a tensão de um elo que se deteriora não por causa da ausência, mas da mentira. A escolha de Joel, tratada com heroísmo silencioso no final da primeira temporada, retorna como uma dívida emocional em aberto — não apenas com Ellie, mas com o espectador.
É nesse terreno instável que surge Abby, interpretada com contenção ameaçadora por Kaitlyn Dever. A vingança que ela profere logo na abertura da temporada funciona como bússola narrativa, mas também como prenúncio da ruptura total. Diferente da versão hipermusculosa dos games, a Abby de Dever compartilha uma fisicalidade mais próxima da de Ellie, tornando ainda mais evidente o espelhamento entre as duas. São jovens marcadas por decisões alheias, arrastadas para caminhos violentos que não escolheram, mas dos quais não conseguem se desvincular. A série antecipa sua presença no enredo, não como um aceno ao fã do jogo, mas como uma afirmação estética: esta adaptação não se contenta em replicar. Ela reconfigura, reorganiza e reformula para tensionar a lógica do maniqueísmo. Se Ellie e Abby estão em polos opostos, é apenas na superfície. A linha que separa justiça de vingança, afeto de culpa, heroísmo de brutalidade, é tênue demais para suportar as simplificações habituais.
O texto audiovisual desta nova temporada atinge um nível técnico que rivaliza com o cinema mais meticuloso. Há uma articulação precisa entre forma e conteúdo: os enquadramentos fechados comprimem as emoções, as paisagens congeladas não ilustram apenas o clima, mas a imobilidade afetiva dos personagens. A fotografia não busca beleza, e sim desconforto. A trilha sonora, econômica, cede espaço para o ruído do não dito. Os silêncios entre Joel e Ellie dizem mais do que qualquer explosão. E quando a violência irrompe, ela é crua, suja, perturbadora — nunca um espetáculo, mas sempre uma consequência. A inclusão da terapeuta Gail, vivida com ironia contida por Catherine O’Hara, não é apenas um detalhe curioso: ela incorpora à série uma dimensão quase clínica, em que a culpa deixa de ser metáfora e se torna matéria de análise. É ali, no embate entre a recusa de Joel e a escuta de Gail, que a série nos obriga a perguntar: o que resta de um herói quando ele se recusa a confrontar seu próprio ato de heroísmo?
Se há algo que esta temporada compreende com precisão é que o trauma não se resolve; ele se acomoda, se disfarça, se desloca. Ellie, interpretada por Bella Ramsey com uma visceralidade que esmaga qualquer expectativa anterior, não é mais a adolescente em formação que conhecemos. Há nela uma dureza que não vem do mundo exterior, mas da quebra de confiança, do vazio deixado por uma verdade que foi negada. Seu envolvimento com Dina, vivido com firmeza e ternura por Isabela Merced, oferece lampejos de leveza, mas também sinaliza que o afeto, neste universo, é sempre um campo minado. Nenhum gesto é inocente, nenhuma escolha é isenta de implicações morais. Até o amor parece condenado a carregar o peso da sobrevivência. Em um enredo onde cada personagem parece condenado a pagar o preço das escolhas dos outros, a humanidade é colocada em xeque de forma implacável.
O dilema ético de “The Last of Us” não reside na clássica escolha entre o bem e o mal, mas na ausência de qualquer estrutura moral confiável. Craig Mazin e Neil Druckmann não têm interesse em oferecer alívio narrativo. Pelo contrário: optam por uma abordagem que privilegia o conflito interno ao espetáculo externo. Ao reduzir a temporada a sete episódios, eles apostam na densidade em detrimento da abrangência. Pode parecer pouco, mas o que está em jogo não é a quantidade de eventos, e sim a intensidade com que cada um reverbera nos personagens. A série não quer agradar a todos — quer desafiar os que a acompanham. E talvez por isso mesmo amplifique a distância entre os fãs dos jogos e os novos espectadores. A fidelidade aqui não é literal, é filosófica: permanece a confiança na inteligência emocional do público, a mesma que fez do jogo um marco.
Ao invés de reconciliação, o que a série oferece é inquietação. Uma recusa sistemática de conforto, uma exploração rigorosa das consequências das escolhas individuais, e uma indagação constante sobre o valor da vida quando a esperança não é mais um recurso. “The Last of Us” entende que, num mundo em colapso, sobreviver pode não ser um triunfo — pode ser, na verdade, o castigo. E é nessa ambiguidade corrosiva que reside sua potência. Ao confrontar o espectador com a impossibilidade de respostas fáceis, a série se eleva à condição de algo mais raro do que uma adaptação bem-sucedida: uma narrativa que não apenas transforma o material original, mas o desafia — e, ao fazê-lo, nos desafia também.
Série: The Last of Us — Segunda Temporada
Criação: Craig Mazin e Neil Druckmann
Ano: 2023-2025
Gêneros: Ação/Drama/Ficção Científica/Thriller
Nota: 10/10