Há uma espécie de obsessão intermitente no cinema contemporâneo: a insistência em retratar o colapso da civilização como forma de escancarar o impasse entre o homem e o ambiente que o cerca. Trata-se de uma compulsão que ultrapassa tendências ideológicas, revelando-se como pulsão narrativa recorrente mesmo em autores que, à primeira vista, não compactuariam com tamanha descrença. Filmes que se debruçam sobre ruínas sociais e colapsos institucionais não mais escandalizam — tornaram-se quase um rito de passagem para cineastas que desejam parecer reflexivos. O que antes provocava inquietação, hoje beira o automatismo. E é justamente nesse terreno árido, já saturado por versões recicladas do apocalipse, que Alex Garland finca seus pés e, com “Guerra Civil”, escava um caminho radicalmente distinto.
O diretor não ignora o esgotamento temático do gênero — ele o assume, o comprime e o distorce até extrair dali um material novo, vertiginoso e inquietante. A estratégia não está em fugir das convenções, mas em submetê-las a uma lógica que as desestabilize. Assim como Kubrick reconfigurou o cosmo em “2001”, Ridley Scott reinventou o futuro distópico urbano em “Blade Runner” e os irmãos Wachowski elevaram a paranoia existencial a patamares filosóficos em “Matrix”, Garland desvia da estrada asfaltada pelo gênero para trafegar em terrenos mais irregulares, onde o desespero é menos espetáculo e mais ruído íntimo. “Guerra Civil” é menos uma representação da destruição e mais um convite a atravessá-la com os nervos expostos.
O enredo poderia parecer corriqueiro: os Estados Unidos divididos, uma guerra civil em andamento e uma equipe de jornalistas cruzando o território em frangalhos para entrevistar um presidente que se recusa a largar o poder. Mas Garland insere nesse trajeto elementos que transgridem as expectativas mais básicas. Em vez de uma narrativa pautada por heroísmo ou soluções fáceis, o que se observa é a erosão dos próprios mecanismos de significação. As personagens — interpretadas com precisão por Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny e Stephen McKinley Henderson — não carregam bandeiras nem discursos; elas são corpos lançados ao caos, tentando registrar o irregistrável. A câmera não procura o épico, mas o absurdo.
Essa recusa ao didatismo também se estende à abordagem estética. Garland sabe operar a tensão com maestria, mas não se limita aos recursos visuais. A brutalidade das cenas não é gratuita; ela cumpre a função de desorientar, de interromper qualquer leitura linear que o espectador tente impor. Há algo de cruel na forma como a narrativa se recusa a oferecer alívio. Mesmo os respiros mais líricos, como os momentos silenciosos entre Dunst e Spaeny, não aliviam o desconforto — ao contrário, o intensificam ao sugerirem o que foi perdido sem jamais nomeá-lo.
Há, também, uma crítica incisiva ao próprio jornalismo — não em tom moralista, mas como exame de uma profissão que, ao buscar a neutralidade, muitas vezes se torna cúmplice da barbárie. A lente do fotógrafo, que deveria documentar, também distorce. A entrevista prometida com o presidente, que move a jornada, revela-se uma miragem contaminada pelo absurdo. A guerra civil que Garland encena não é apenas militar ou política: é uma guerra semântica, na qual palavras como “nação”, “verdade” e “poder” perdem qualquer lastro.
A cena do confronto com os milicianos é um dos ápices dessa experiência sensorial e intelectual. A brutalidade é filmada sem glamour, e Henderson entrega um dos momentos mais pungentes do longa ao incorporar um tipo de heroísmo que não cabe nas narrativas tradicionais. Não se trata de coragem, mas de resistência passiva diante do insuportável. É um gesto mínimo, mas que carrega um peso devastador. Ao final, o que se impõe não é uma lição ou uma resolução — mas um estado de suspensão que, por si só, já é devastador.
“Guerra Civil” não propõe respostas, tampouco busca consolo. Sua força reside justamente na recusa a simplificações. Em tempos de discursos fáceis e polarizações performáticas, Garland oferece uma experiência que exige do espectador não apenas atenção, mas envolvimento visceral. O que se vê não é o futuro distópico — é o presente, dissecado com frieza e precisão. Ao fim, resta apenas o eco de uma pergunta incômoda: diante de tudo isso, o que ainda é possível registrar? E para quem?
★★★★★★★★★★