Para maratonar em um dia: a melhor série já feita e que ficou escondida por tempo demais, no Prime Video Divulgação / Amazon Studios

Para maratonar em um dia: a melhor série já feita e que ficou escondida por tempo demais, no Prime Video

Eu nunca vi nada parecido com “Kevin Can F**k Himself”, série criada por Valerie Armstrong, lançada em 2021 e exibida pelo Prime Video. A produção rompe com o estilo narrativo comum ao alternar entre dois formatos distintos: o da realidade crua e o da comédia estilo sitcom. É por meio dessa estrutura bicamada, inovadora e provocadora, que Armstrong costura uma crítica dolorosa às clássicas sitcoms americanas — como “Friends”, “How I Met Your Mother”, “Everybody Loves Raymond” e “Married With Children”, entre outras — nas quais os homens ocupam o centro da narrativa, enquanto as mulheres orbitam ao redor deles, existindo apenas para suprir seus caprichos e alimentar seus egos inflados. Nessas séries, os protagonistas masculinos são constantemente infantilizados e se isentam de responsabilidade por seus comportamentos egoístas. A crítica de “Kevin Can F** Himself” vai além da ficção: ela se estende ao papel da mulher na sociedade, constantemente condicionada a abrir mão de sua identidade, seus valores, sonhos e desejos para atender às expectativas e aos ideais masculinos.

A trama acompanha Allison McRoberts (Annie Murphy), esposa de Kevin (Eric Petersen), um sujeito carismático e patético, obcecado por esportes, que arruina as economias da família comprando camisas de colecionador, destruindo o sonho de Allison de se mudar para uma casa melhor. Kevin está sempre acompanhado do pai alcoólatra, Pete (Brian Howie), e do vizinho e melhor amigo, Neil O’Connor (Alex Bonifer), que funcionam como fiéis escudeiros, apoiando suas decisões inconsequentes. Sempre que Kevin aparece em cena, a série assume o formato de sitcom: a iluminação é artificialmente vibrante, a fotografia é saturada, a trilha sonora solta risadas de plateia e seus comentários sexistas e atitudes abusivas são “diluídos” em tom de piada, da mesma forma que acontece nas comédias tradicionais. O que testemunhamos é a remoção do verdadeiro peso dos abusos emocionais — e, por vezes, físicos — sofridos pelas mulheres, transformados em entretenimento, como se fossem leves e aceitáveis. Allison sorri, resignada, pois no espetáculo que é sua vida, Kevin é o protagonista. Suas dores, angústias e frustrações são sufocadas pela luz dos refletores e abafadas pelo som mecânico das gargalhadas.

Tudo muda quando Kevin deixa o ambiente. Quando ele sai de cena, a série abandona o filtro da comédia e revela a verdadeira Allison. As cores se tornam frias e lavadas, a iluminação é natural e dura, a câmera desacelera, e o clima se torna sombrio, pesado, real. Nesse cenário, Allison tira a máscara do bom humor e revela o peso de suas dores. Em silêncio, ela transborda frustração e desamparo. Seu semblante denuncia traços de depressão e ansiedade, emoções que ela esconde atrás de sorrisos forçados e rotinas vazias. A narrativa, então, assume um tom dramático e introspectivo, aprofundando o retrato de uma mulher que, exausta de viver à sombra de um homem infantilizado, começa a arquitetar sua libertação por vias extremas.

A gota d’água é quando um antigo namorado reaparece na cidade. A presença dele reaviva memórias e desejos esquecidos, despertando em Allison a coragem de quebrar regras e desafiar o papel que foi imposto. Ela inicia um caso extraconjugal, mas sua rebeldia não para por aí: Allison decide que precisa eliminar Kevin — literalmente. O plano de assassinato se desenvolve com a ajuda de Patty O’Connor (Mary Hollis Inboden), a irmã marginalizada de Neil, que também carrega suas próprias dores e frustrações dentro de uma estrutura opressiva que também a suga. Juntas, as duas formam uma aliança improvável e poderosa.

A ideia de matar Kevin nunca se reduz ao desejo literal de homicídio, mas se trata de uma metáfora profunda e simbólica: o assassinato de Kevin representa a destruição de um sistema inteiro. Allison não quer apenas eliminar o marido; ela quer enterrar uma hierarquia social em que homens valem mais que mulheres. O que ela busca é a morte de um status quo que coloca os homens no centro de tudo, um sistema narrativo — e social — que faz da mulher apenas uma coadjuvante. Ela quer retomar a autoria de sua própria história, ser protagonista de sua existência, calar as vozes que a reduzem ao papel de suporte e romper com a rotina de abusos, humilhações e invisibilidade.

A estrutura narrativa da série é uma das maiores inovações da televisão recente. O vai e vem entre os gêneros — comédia e drama — não é apenas um recurso estético; é um espelho das camadas que compõem a vida das mulheres presas a papéis socialmente definidos. A alternância entre o sitcom e o drama serve para enfatizar como, enquanto o mundo ri e segue em frente, muitas mulheres estão sofrendo em silêncio. O riso gravado que pontua as falas de Kevin soa como zombaria à dor real de Allison, enquanto ela tenta, desesperadamente, retomar o controle de sua vida. O contraste entre os gêneros evidencia como a misoginia estrutural é disfarçada de entretenimento, e como o humor é muitas vezes usado para mascarar a violência simbólica e emocional.

Allison é a representação de milhares de mulheres que, por anos, sufocaram seus sentimentos para manter uma aparência de normalidade. Seu comportamento revela sinais claros de esgotamento emocional, com atitudes impulsivas, fantasias de fuga e desejos autodestrutivos. Já Kevin encarna o arquétipo do homem mimado pelo patriarcado: imaturo, inconsequente, egoísta — e ainda assim, socialmente aceito e até mesmo amado. Ele é a face da cultura que tolera e romantiza comportamentos tóxicos sob a desculpa do humor. Patty, por outro lado, surge como a mulher marginalizada que finalmente encontra um propósito ao se aliar a Allison. Ela representa a sororidade que floresce mesmo em contextos adversos e que, aos poucos, se torna o combustível da transformação.

“Kevin Can F**k Himself” é uma provocação necessária. É uma série que aponta o dedo para as feridas abertas de nossa cultura e diz, sem meias palavras, que não dá mais para rir de certas coisas. É uma obra que denuncia como o sofrimento feminino tem sido sistematicamente transformado em piada, tanto na televisão quanto na vida real, e que exige que o espectador pare, observe e questione. Allison quer matar Kevin, mas, no fundo, quer apenas viver. E isso, por si só, já é revolucionário.

Filme: Kevin Can F** Himself
Diretor: Valerie Armstrong
Ano: 2021
Gênero: Comédia/Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.