O golpe que faria Mikhail Bakunin sorrir: o anarquista que enganou os bancos na Netflix Divulgação / Netflix

O golpe que faria Mikhail Bakunin sorrir: o anarquista que enganou os bancos na Netflix

A convivência em sociedade se revela um campo minado onde bem e mal se enfrentam incessantemente, visão que, se por um lado resvala no reducionismo, por outro reflete a angústia de quem percebe que a balança tende a pender para o lado mais sombrio. O esforço de enxergar o outro sem armaduras, abandonar a ânsia de impor verdades e acolher o diferente exige um sacrifício que, a depender da circunstância, equivale a uma viagem a um mundo paralelo, onde o incompreensível se torna trivial.

A vida em comum nunca é simples; mulheres e homens seguem presos em dilemas, carregando fardos que raramente soltam, seja por incapacidade, seja por não quererem encarar o abismo das próprias inquietações — muitas das quais ocultam-se nos recessos mais obscuros do espírito.

Herdeira dos ideais da Revolução Francesa, que entre 1789 e 1799 redesenhou os contornos do Ocidente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, simboliza uma conquista fundamental na luta pela dignidade. Sua difusão ampliou a consciência global sobre o respeito às diferenças, até então tratado como mera concessão dos poderosos aos despossuídos.

No centro desse debate, afloraram discussões sensíveis sobre tradições e identidades, invariavelmente atravessadas pela política, território onde ninguém teme se aventurar, nem os astutos nem os imprudentes. Javier Ruíz Caldera recorre a uma das grandes ausências do mundo contemporâneo em sua mais recente incursão ao cinema: o idealismo. Em tempos de utopias em ruínas, o espanhol revisita a trajetória de uma figura emblemática do anarquismo na Espanha do século passado e, ao fazê-lo, traça um retrato contundente de uma era repleta de fissuras.

Lucio Urtubia (1931-2020) foi um homem que nunca abandonou o ímpeto de transformar a realidade. O roteiro de Patxi Amezcua resgata episódios marcantes de sua trajetória, desde sua saída da Espanha franquista em 1962 até o refúgio inesperado na Bolívia, após cruzar o caminho do FBI. A jornada desse pedreiro idealista, que encontrou na militância operária uma razão para lutar, foi repleta de desafios e descobertas. Ao longo do caminho, amou, sofreu, resistiu.

Caldera, ao traduzir essa história para a tela, investe em um lirismo que ressalta o peso simbólico do personagem, um nome quase esquecido fora dos círculos iniciados, mas cultuado entre aqueles que enxergam no anarquismo não apenas uma ideologia, mas um grito contra as desigualdades de um mundo indiferente. Nesse contexto, os assaltos a bancos, realizados não por ganância, mas por sobrevivência, são recriados com um realismo que transporta o espectador para os conturbados anos 1960, num cenário onde os sonhos revolucionários se misturavam à aspereza da vida cotidiana.

O romance com Anne, vivida por Liah O’Prey, e a relação com a filha Juliette são pincelados de maneira sutil, ofuscados pela construção de um protagonista cuja devoção ao ideal muitas vezes sobrepunha-se aos afetos. Como Rousseau, que via na injustiça social um mal maior que qualquer laço familiar, Urtubia seguiu adiante sem olhar para trás. Em última análise, “Um Homem de Ação” apresenta um retrato de um espírito inquieto, capaz de atitudes extremas, mas sempre movido por um pragmatismo peculiar. Diferente de Che Guevara, a quem chegou a encontrar em circunstâncias inusitadas, esse resistente sobreviveu quase nove décadas e, ao contrário de tantos que mudaram de rumo, jamais expressou arrependimento por suas escolhas.

Filme: Um Homem de Ação
Diretor: Javier Ruíz Caldera
Ano: 2022
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★