Aclamado no Festival de Veneza, espetáculo audiovisual nacional disputou 5 prêmios e está na Netflix Divulgação / Cinemascópio

Aclamado no Festival de Veneza, espetáculo audiovisual nacional disputou 5 prêmios e está na Netflix

Há poesia no mangue. Uma poesia suja, fétida, violenta, que vai se entranhando na carne e na alma das pessoas que habitam Guaxuma, vila de pescadores a pouco mais de onze quilômetros ao norte de Maceió, e que aprendem rápido a adaptar-se à estranha magia que paira por entre os coqueiros. “Sem Coração”, desdobramento do curta-metragem homônimo dirigido por Nara Normande e Tião em 2014, sabe-se um filme repulsivo cheia de pontos controversos, mas também não deixa de encantar pelos cenários paradisíacos, pela promessa de felicidade e pela inocência corrompida dos tipos que preenchem a história.

Os diretores-roteiristas voltam ao enredo de dez anos atrás, vencedor do Prêmio Illy de Melhor Curta na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, para falar de expectativas, desejo, temores, sonhos gorados e repressões de uma turma de adolescentes, entre os quais despontam duas meninas, atentas a um sentimento novo e avassalador.

No verão, Guaxuma espera ansiosa pela leva de turistas que elevam a densidade demográfica do lugarejo. Os pais de Tamara mantêm uma casa nos arredores, uma espécie de santuário em meio à pobreza lírica de gente que não passa fome, embora nunca saia da margem, que não avança, que não conhece seus direitos e a quem o futuro é criminosamente negligenciado. É aí que ela toma pé de sua diferença sobre aqueles que sabem que jamais terão a chance de mudar de vida, como ela a tem.

Normande resgata suas próprias lembranças em Guaxuma ao dirigir Maya de Vicq, sensível aos dilemas existenciais e às reviravoltas de sua anti-heroína, doce, mas um tanto perdida, reagindo a seu modo a desídia dos pais enquanto dá vazão a aventuras fora da lei com os moleques da vizinhança. Arrombamentos de imóveis onde realizam convescotes com o que encontram na despensa dos outros e pequenas orgias tornam-se comuns, e só cessam quando um dos proprietários bate à porta de Fátima e Edu, os pais de Tamara vividos por Maeve Jinkings e um Erom Cordeiro irreconhecível sob a barba hirsuta e o cabelo desgrenhado. 

Os diretores elaboram esse segmento da trama até que sintam firmeza para levar o longa para interessa. Depois de algumas cenas na companhia de Galego, de Alaylson Emanuel, e seus comandados, a curiosidade é mais forte e ela quer saber quem está por trás do epíteto que batiza o filme. Sem Coração, a filha sem mãe de um pescador solitário, mas esperançoso, ronda Tamara e os demais crianças como um espectro,  até que se encontram, primeiro diante da baleia que agoniza na areia, antevista no pesadelo em comum das duas, e depois num prédio abandonado.

A transferência da personagem de De Vicq para Brasília, onde fará cursinho e, em tudo dando certo, poderá matricular-se na Universidade da capital, agora pode também não acontecer. Na pele de Sem Coração, ou Duda, Eduarda Samara capta todos os olhares, sobretudo na iminência do desfecho, numa iluminação que coroa o tom brejeiro e místico dessa narrativa, delirante e perturbadora.


Filme: Sem Coração
Direção: Nara Normande e Tião
Ano: 2023
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.