Normas de comportamento, padrões de conduta, finesse, bom trato e bom gosto: tudo isso parece ter sido estabelecido para acentuar ainda mais a distância entre os que detêm poder e os que obedecem, possivelmente com o intuito de fazer com que estes últimos aspirem ao status dos primeiros — embora cientes de que o sistema jamais permitiria tal ascensão. No entanto, o amor tem a capacidade de nivelar todos os homens, pois aqueles verdadeiramente apaixonados não se importam com a origem de quem lhes cativa o coração; ao se descobrirem consumidos pela paixão, querem apenas amar. A estrada para a perdição é ampla, mas obscura; uma vez que o homem trilha esse caminho sombrio da existência, surgem inúmeros desvios que, por mais retos que pareçam, conduzem à desventura e, eventualmente, à morte.
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos e complexos da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. O pensamento de Heidegger destaca as diversas descobertas que fazemos ao longo da vida, uma série de mistérios cuja solução é ilusória. Nesse contexto, a inquietude do homem diante do incessante, implacável e cruel passar do tempo gera nele a urgência de não desperdiçar oportunidades e de se agarrar, como um mendigo a um prato de sopa numa noite de inverno, ao menor indício de chance de mudança de vida, sempre necessária, mas muitas vezes a única indicação de que podemos seguir em frente, de que a vida não desistiu de nós.
Ao identificar possíveis pontos de arrependimento e correção de qualquer comportamento, o homem deve, sem hesitação, vencer a correnteza e salvar-se. A existência humana, para Heidegger, é um eterno vir-a-ser, onde nada é imediato ou definitivo, e a natureza do homem deve ser cautelosa para não se comprometer com projetos errados, pois perder tempo é um erro que pode sair caro. A maneira como Heidegger compreende a vida, e mais amplamente a verdade da vida, leva a uma conclusão poética e perturbadora: devemos continuamente buscar novos meios de agir.
“Cidade de Gelo” (2020), do russo-americano Michael Lockshin, desenvolve um enredo repleto de contrastes e escolhe um cenário encantador para desabrochar, mágico como só o amor sabe ser. Lockshin constrói uma narrativa sobre a vida na Rússia da virada do século 19 para o 20, um período particularmente tumultuado na história do país, mas que não é tratado como tema central do roteiro de Roman Kantor, pelo menos não explicitamente. A efervescência da sociedade russa é retratada de forma delicada, refletida de vez em quando na expressão dos dois personagens centrais, um casal improvável que só se forma efetivamente na última parte da trama. Lockshin posiciona seus protagonistas de modo a fazer com que se adaptem ao que ele deseja que o espectador compreenda, tanto sobre eles quanto sobre a própria história. Profundamente melodramático, o filme aposta num conflito amoroso que demora a engatar, intencionalmente emulando as grandes novelas da literatura russa, de Dostoiévski e Tolstói, e a comparação com essas narrativas vem de maneira natural.
O trabalho de Lockshin é essencialmente um “Romeu e Julieta” abaixo de zero, que se apoia no argumento da luta de classes, mas não de forma a se tornar panfletário, felizmente. Matvey, o proletário interpretado por Fedor Fedotov, começa a sentir o desejo de liberdade do espírito humano na transição da adolescência para a vida adulta, o que resulta em seu envolvimento com a gangue de ladrões liderada por Alexey, interpretado por Yuriy Borisov, responsável pelos pequenos furtos que aterrorizam os habitantes de São Petersburgo.
Para provar seu valor ao grupo, Alexey incita Matvey a invadir o quarto de Alice, a jovem interpretada por Sonya Priss, durante uma madrugada de pouca atividade criminosa. Filha de Nikolai Nikolaievitch, um baronete lotado no comissariado de polícia local, interpretado por Aleksei Guskov, Alice flagra a empreitada do aspirante a delinquente e não consegue mais esquecê-lo, a ponto de recusar as investidas de Arkadi, o oficial subchefe das forças de segurança, interpretado por Kirill Zaytsev.
Conforme se aproximam, o diretor faz com que ambos inspirem no outro qualidades que jamais alcançariam sozinhos. Alice vê na amizade com Matvey a chance de, através de uma ideia tola, quase pueril, tentar ser aceita no departamento de química da universidade local, enquanto o malandro interpretado por Fedotov percebe que está desperdiçando a vida ao lado de pessoas como Alexey e decide mudar. O desfecho, previsível, a bordo de um vagão de trem, não deixa margem para dúvida quanto ao caráter farsesco (e sublime) da história. Exatamente como a vida simples dos personagens dos contos de fada de um tempo que só volta nesses filmes que nos permitem sonhar.
Filme: Cidade de Gelo
Direção: Michael Lockshin
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10