Uma das mais belas e encantadoras histórias de amor do cinema está na Netflix Divulgação / Translux

Uma das mais belas e encantadoras histórias de amor do cinema está na Netflix

Tim, o protagonista de “Questão de Tempo”, chega aos 21 anos socorrendo-se da ilusão de que voltar a um dado ponto de sua história, armado de uma vesana certeza de que tem todas as respostas para todos os males, dar-lhe-á a vida perfeita. Ainda que tal mágica fosse mesmo possível, não há garantia alguma quanto a se saber se encrencas piores não se lhe atravessariam o caminho — essa, sim, uma hipótese assombrosamente real —, levando-o por novas descobertas e as respectivas novas frustrações, recomeçando aquele ciclo de que move a roda da existência de todas as criaturas sob o sol.

Em “Feitiço do Tempo” (1993), Harold Ramis (1944-2014) canonizou essa antiga fixação do cinema com a saborosa fábula de Phil, o desditado meteorologista de Bill Murray, um meteorologista preso nas últimas 24 horas que pôde viver por anos a fio enquanto aprecia numa inércia involuntariamente ao naufrágio de seu casamento e a uma súbita reviravolta na carreira, esforçando-se por sufocar sua leviandade e sua tacanheza de espírito para, afinal, ganhar o prêmio de voltar ao futuro.

Aqui, Richard Curtis vira a chave na direção oposta e dá a Tim o poder de avançar e retroceder na contramão dos acontecimentos quantas vezes quiser, apenas no sentido do ontem e desde que seus atos não interfiram na vida de ninguém que não seja ele mesmo — como se essa possibilidade não fosse outro delírio. Uma generosa medida de licença poética faz com que a audiência embarque de corpo e alma na viagem multissensorial, divertida e transformadora de Curtis, cujo roteiro leva a uma trama plena de seduções variadas.

Uma cena em que o protagonista, interpretado com convicção e doçura por Domhnall Gleeson, tem uma conversa bastante objetiva com o pai serve para que Curtis explique o assunto central de seu filme. É quando Tim fica a par do grande segredo que reveste a natureza dos homens da família, e quase se podem ouvir as trombetas que anunciam os portais de uma nova dimensão, prestes a se abrir. Bill Nighy compõe com o personagem de Gleeson — ingênuo como em “Ex_Machina — Instinto Artificial” (2015), ainda um de seus melhores trabalhos, porém mais esperto que na ficção científica de Alex Garland — a dupla que sustenta toda o conto de fantasia e esperança que há por trás dos lances às vezes um tanto austeros que pipocam entre Londres e Crawley, um subúrbio da capital inglesa.

As excelentes participações femininas, sobretudo da Charlotte de Margot Robbie e de Rachel McAdams na pele de Mary, duas aspirações românticas do mocinho, sacodem a narrativa no momento em que o filme ameaça derivar para um ramerrão de sequências encabeçadas pelos dois personagens masculinos. Ao replicar ideias vistas em “Simplesmente Amor” (2003), arejando um e outro ponto de vista e fazendo com que os diálogos se tornem mais categóricos, Curtis inspira o público a não desistir do amor e a prescindir das bruxarias. A vida é, sim, uma coisa doce, e também por isso às vezes dá náuseas. Fugir para outro mundo, entrementes, não transforma ninguém de água para vinho, num estalar de dedos: eis o que Tim aprende, ao cabo de uma mancheia de angústia.


Filme: Questão de Tempo
Direção: Richard Curtis
Ano: 2013
Gêneros: Romance/Ficção científica/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.