Muitoda graça de “Anônimo” está na performance quase sem defeitos de Bob Odenkirk, um comediante que a direção de Ilya Naishuller e o roteiro de Derek Kolstad provam ser capaz de ir muito além da piada e do riso. Odenkirk soa como Liam Neeson na pele de seus cativantes anti-heróis num papel feito de nuanças quase imperceptíveis entre o humor e a tragédia ao lutar contra a própria natureza para continuar vivo, mas com aquela circunspecção mecânica que deixa qualquer um boquiaberto.
Com estilo próprio, Odenkirk faz o inverso do que se acostumou a ver no desempenho do ator principal da franquia “Busca Implacável” (2008-2014) e de “A Chamada” (2023), dirigido por Nimród Antal. Aqui, a explosão de Neeson cede espaço à frieza e a uma metodologia muito peculiar no que toca a exorcizar fantasmas.
Hutch Mansell faz tudo igual sempre, e gosta. Todo santo dia, ele toma o café da manhã com a mulher, Becca, e os dois filhos, Brady e Sammy, de Gage Munroe e Paisley Cadorath, vai para o trabalho com seus suéteres escuros, apresenta o cartão de trânsito, espreita o movimento da cidade tranquila e é observado por ela e corre para alcançar o caminhão do lixo, que nunca tem a delicadeza de o esperar.
Naishuller dá sinais de que o casamento de Hutch e Becca vai mal, e Connie Nielsen não desperdiça a oportunidade, amadurecendo Becca e explicitando sua amargura. Quando o arco está coeso o bastante e o núcleo já chamou a atenção do público, o diretor fixa-se no que confere sentido ao longa. À procura de dinheiro, um casal de assaltantes latinos invade a casa da família.
No centro da mesa da cozinha se vê uma tigela onde há tudo quanto aqueles dois podem lucrar, uma mancheia de dólares amarfanhados — e o objeto que vai desencadear a virada da história. Hutch entrega também seu relógio, cujo valor sentimental supera o que os bandidos poderiam conseguir numa venda posterior. Pela iluminação baixa, o público capta a proximidade de um evento paralelo.
A impressão se confirma quando Brady ataca o delinquente, ao passo que Hutch saca um bastão de golfe e se prepara para desferir uma bordoada na mulher que está com o criminoso. Mas, como se ouvisse uma voz que lhe calasse fundo, estanca, e os ladrões saem de mãos vazias.
Um mal-estar aflige os Mansell por alguns dias, até Hutch ser forçado a tomar uma atitude ao perceber entre as notas amassadas poderia estar uma pulseira de Sammy, que desapareceu. Esse é o gancho por meio do qual o diretor leva seu protagonista, pai amoroso e marido devotado (apesar de preterido), por um vaivém de dilemas morais, cuja resolução passa pelo exímio talento para lutas dos tempos em que Hutch era agente do FBI.
Naishuller elabora esse surto de Hutch apostando no desfecho que realça a índole naturalmente bestial de um chefe de família que não conhece limites quando se trata de defender os seus, capaz de deixar entre a vida e a morte o filho de um mafioso russo — um longo e fadigoso enxerto no meio da história —, mas que Odenkirk tira de letra. Até ir voltando a sua vidinha de burocrata convicto, rodeado de amor no aconchego do lar.
Filme: Anônimo
Direção: Ilya Naishuller
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10