As humanas misérias ressoam para os personagens de “Hereditário” como sinos de uma estranha catedral perdida no deserto, reverberando aquele barulho aos confins do mundo na lembrança não só de que a morte é uma certeza, mas também que a danação eterna é uma possibilidade real. Ari Aster faz de seu filme uma espécie de caldeirão em que a pletora de velhas mágoas e tantos outros sentimentos malditos que azucrinam uma família refervem sem pressa até que desse caldo fique apenas a substância com a qual elabora uma trama marcada pelo rancor. Antes, todavia, empenha-se no jogo de gato e rato que perpassa três gerações, e com o que se vai formando desse processo levanta uma história pungente, que segue doendo numa cadência entre ágil e reflexiva, mas nunca arrastada.Tudo parte da estratégia certeira quanto a mesmerizar a audiência, expandir o suspense e o fazer metamorfosear-se num terror psicológico que ultrapassa a tensão e molesta também a disposição física de quem ousa assistir até o final.
Não obstante este seja um enredo destacadamente autoral, tem-se a impressão de que Aster adapta um dos contos plenos do realismo mágico de Edgar Allan Poe (1809-1849) ou do chamado horror cósmico de H. P. Lovecraft (1890-1937), onde elabora aspectos que o racional não alcança e procura dar toda a ênfase ao imponderável; para surpresa de muitos, a resumidíssima sinopse de seu filme disposta numa tela negra no prólogo deixa claro que quis emular a força do infortúnio da vida ela mesma, o que consegue sem muita dificuldade. À primeira vista, “Hereditário” tem a natureza de uma nota de jornal, ofensivamente protocolar, com a descrição de um crime bárbaro, logo esquecido no ramerrão do embate das mulheres e homens comuns contra seus leões de cada dia. Ainda no primeiro ato, o diretor começa a rasgar a fantasia que envolve seu roteiro e seus personagens, dando pistas sobre onde quer chegar ao aludir à morte de uma velha senhora, a mãe e avó que parecia o esteio de um clã que não abdica de mistérios de outros tempos.
Absorver o rol de maldições que paira sobre os Graham exige toda atenção. Annie, a mãe sobrecarregada e histérica de Toni Collette, é de longe quem mais provoca mal-estar, e dizer sem medo que é a histeria que se dela apossa — e não o cansaço de tudo — é uma penosa tarefa. Vivendo no mundo das aparências, Annie tenta fazer que o marido, Steve, de Gabriel Byrne, acredite que os dois têm um casamento feliz. Bem, isso até seria verdade não fossem os pais de Peter, o primogênito vivido por Alex Wolff, e Charlie, de Milly Shapiro, uma fonte inesgotável das amarguras que espalham a todos quantos chegam perto deles, por razões diametralmente opostas. E os filhos são sempre as primeiras vítimas.
Na transição do segundo para o terceiro ato é quando Aster tira algumas lágrimas do público. É aí que fica evidente a intenção de tirar o véu de beleza imperturbável da vida a dois, idealizada por tantos, e apontar suas inconveniências, sobretudo depois dos filhos. No encerramento, Wolff, numa performance minimalista e brilhante, incorpora um certo Paimon, o que explica em parte tanta loucura e a tragédia que parece ter se amalgamado à essência daquela família. Mas há nessas pessoas muito mais do que os olhos alcançam.
Filme: Hereditário
Direção: Ari Aster
Ano: 2018
Gêneros: Terror
Nota: 10