Nasce um esperto por hora e dois otários por segundo. Na matemática tão peculiar da vida, Iván Márquez, o protagonista do ótimo “O Entregador”, está na primeira categoria — ao menos ele se esforça para tal — e espera que os outros inúmeros membros do estrato subsequente ajam de acordo com o que se espera deles. Num registro notável da ganância e da ruína de um homem sobre o pano de fundo da crise econômica que varreu a Espanha em meados dos anos 2000, Daniel Calparsoro surpreende com um filme que dribla o óbvio ao descrever com minúcias o esquema criminoso responsável por desviar bilhões de euros dos cofres públicos espanhóis entre 1992, ano da 33ª Olimpíada de Verão, em Barcelona, uma década antes que o euro passasse a vigorar na Espanha, em 1º de janeiro de 2002, e 14 de setembro de 2008, quando da falência do Lehman Brothers, a principal instituição financeira a bancar créditos para moradia destinados a famílias de classe média nos Estados Unidos. Aos trinta anos recém-completados, Iván é o peão que torna-se rei (e volta a ser peão) no roteiro de Patxi Amezcua e Alejo Flah, inspirado, por evidente, no que disseram o Ministério Público e a polícia da Espanha e a imprensa do mundo todo, com a providencial ocultação das verdadeiras identidades dos componentes desse enredo sombrio de luta por poder.
Calparsoro escolhe romper seu filme com um manjado flashback que se desdobra nos acontecimentos centrais do longa. A fotografia em tons de verde brilhante de Tommie Ferreras destaca uma cidade futurista que, se vai ver, é Hong Kong. Um imenso contâiner desce até um caminhão e essa carregamento está sob a guarda do jovem aspirante a milionário, que leva 3% em tudo correndo bem. O proprio Iván presta-se a narrador onipresente e onisciente da história, que ele faz voltar aos tempos em que era manobrista em um luxuoso clube de golfe em Madri e morava com os pais em Vallecas, bairro pobre da periferia da capital espanhola. A pouco e pouco, Arón Piper esclarece os termos em que se deu a ascensão meteórica de seu personagem, ao passo que domina todas as cenas; na sequência em que aparece voltando para casa depois de um dia em que conseguira mil pesetas de gratificação, já se tem uma ideia clara de que o rapaz está insatisfeito com aquela vida e quer voar alto. Embora muito rápidas, as passagens concentradas neste núcleo, com as boas performances de Arantxa Aranguren e Antonio Buíl, são o contraponto necessário para que jamais se perca de vista a patológica ambição de Iván. Como o destino sempre acaba ajudando quem persegue seus sonhos, sejam eles quais forem, ele sai de Vallecas para o topo. Mas não por muito tempo.
A partir do segundo ato, o diretor leva a audiência por um passeio pelo jet set europeu, depois que consegue, mediante um pequeno golpe, ser o novo mensageiro de uma organização internacional que lava a receita do tráfico de pedras preciosas. Em cada viagem para países próximos, embolsa dezenas de milhares de euros, conhece Bruxelas, Genebra e Paris, dorme com as mais belas mulheres, e chega a Marbella, na Costa do Sol, onde gângsteres da construção civil reinam sobre a especulação imobiliária, e fazem brilhar os olhos já faiscantes do entregador. Nesse segmento, Calparsoro se vale de um elenco de primeira, com atores do quilate de Luis Tosar e Luis Zahera, para representar a glória e a perdição de seu protagonista, inerte no universo de ilusões das fortunas voláteis, às quais a alfândega e a polícia fazem vista grossa. A farra só acabou por intermédio de Hervé Falciani, um especialista em informática que trabalhava para o HSBC. No documento conhecido como Lista Falciani, constava o nome de 106 mil sonegadores de impostos por meio de contas do banco na Suíça. Até hoje, a Espanha passa por gargalos de investimento em saúde e educação.
Filme: O Entregador
Direção: Daniel Calparsoro
Ano: 2024
Gêneros: Thriller/Comédia
Nota: 9/10