A história de amor que rompeu tabus e transcendeu o tempo, na Netflix Divulgação / BBC Films

A história de amor que rompeu tabus e transcendeu o tempo, na Netflix

Em 1840, uma mulher remexe a terra em busca de resquícios da própria existência em “Ammonite”, o belo registro da história de (auto)abandono e resgate da inglesa Mary Anning (1799-1847), uma figura de proa na história da paleontologia mundial. Anning dedicou boa parte de seu tempo a procurar e estabelecer um método para catalogar os tais amonites do título, ou melhor, as evidências geológicas de que essas criaturas, moluscos cefalópodes do Período Devoniano, caracterizado pelo surgimento dos peixes, algas de pequeno porte e corais, existiram mesmo.

Isso foi há cerca de quatrocentos milhões de anos, mas as formas de vida que despontaram nessa fase seminal do planeta garantiram a continuidade do processo evolutivo, dos mares para o solo, até que, 2,5 milhões de anos atrás, os primeiros espécimes de Homo habilis, nossos ancestrais diretos, se lançaram à aventura de dominar o vasto ambiente a sua volta. Certamente, toda essa aura de conquista e exploração do que ainda se dava a conhecer encantou Anning, que pôde experimentar também, a certa altura, o gosto de uma outra grande descoberta, e é nesse momento que a cinebiografia de Francis Lee toma novo fôlego e enfronha-se pelos meandros da intimidade da protagonista, arrebatada pela paixão súbita e cheia de dificuldades que a transforma.

O diretor-roteirista deixa claro que Anning nunca foi uma coisa só, e que, se tivesse de escolher, teria ficado com a instável carreira; a esse respeito, uma monumental controvérsia instala-se quanto à veracidade do enredo de “Ammonite”, na Netflix, o que não chega a representar nenhum grande prejuízo para a memória de alguém cujo nome se confunde com uma importância etapa da ciência.

Mary Anning parece não se entediar nunca com a rotina excessivamente pacata de sair do casebre em que mora com a mãe, Molly, em Lyme Regis, sudoeste da Inglaterra, e passar horas a fio escavando a areia e recolhendo conchas e pedras em cuja superfície desenham-se crustáceos que antecederam as atuais lulas e polvos, além de, quando com muita sorte, lagartos marinhos, que acabam sendo atribuídos a homens, a exemplo de um certo Henry Hoste Henley (1766-1833). Lee acha um jeito perspicaz de começar seu filme já aludindo à servidão involuntária de Mary: enquanto os créditos ainda ocupam a tela, ouve-se o barulho de um filete d’água escorrendo para algum lugar, o que, por óbvio, não pode ser o vaivém do oceano no momento em que quebra na praia.

Pouco depois, uma criada é vista a esfregar o chão, tendo de ceder espaço para um grupo de homens que chega com o novo fóssil. A cena corta para o cotidiano doméstico da paleontóloga, encerrada numa vida que a qualquer um pareceria um castigo, dividindo uma sopa aguada com Molly, interpretada por Gemma Jones de modo a realçar mais um tanto a solidão da personagem central, até que sua sorte parece querer virar. Um homem entra na pequena sala que usa para expor as formações calcárias de criaturas de tempos pretéritos e pedrinhas coloridas sem valor arqueológico que acha nas franjas do mar e tenta vender aos turistas, acompanhado da esposa. Ele lhe faz uma irrecusável proposta de trabalho — da qual Mary ainda tenta declinar —, mas sua intimidade é que vai sofrer o maior baque.

Roderick Murchison, um colega de ofício de Londres, aborda Mary, ao passo que Charlotte, deslumbrada com o que vê, se põe a xeretar em tudo, até ser repreendida pela anfitriã. A rápida participação de James McArdle serve para introduzir a presença da companheira, que  cresce organicamente na narrativa. Charlotte, com Saoirse Ronan ótima como sempre, toma conta do filme, sendo respaldada por Kate Winslet, até que fica impossível dissociar uma personagem da outra.

O envolvimento de Mary e Charlotte — que, frise-se, nunca restou provado (a hipótese mais verossímil é que Anning tenha de fato sido uma ermitã ao lado da mãe, e provavelmente morrera virgem, aos 47 anos, nove meses e dezoito dias — vem a tona com toda a suavidade, até derivar para as passagens de sexo que destoam um bocado da placidez daquelas vidas. Se existe aqui um dado que não se pode contestar, entretanto, é a submissão de mulheres adoráveis, condenadas pela biologia à revoltante função de apêndices de maridos e patrões despóticos e sem talento. Quase dois séculos mais tarde, Mary Anning ainda está muda.


Filme: Ammonite
Direção: Francis Lee
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama/Biografia
Nota: 8/10