Na Netflix, filme frenético e alucinante mistura suspense e mistério e não te deixará piscar por 15 minutos

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Há filmes que despertam os incômodos atávicos da condição humana. O bucolismo das paisagens de uma China quiçá congelada em algum ponto do início do século 20 é a poderosa arma de que Peter Ho-Sun Chan se socorre na intenção de fazer o espectador viajar no tempo — e para dentro de si mesmo — e refletir sobre valores condenados a um ostracismo que resiste a toda sorte de apelo, como se se tornasse a nova ideologia, definitiva e capaz de abraçar o mundo com suas perversões.

Numa época em que decência tinha mesmo lugar, homens não toleravam que pairasse numa nesga de dúvida sobre suas ações, e é desse ponto que sai “Dragão”, saga de enganos que redundam em crimes, que por seu turno não demoram a puxar sentimentos paradoxais e aniquiladores, cenário bastante familiar às produções do cinema oriental. A roteirista Aubrey Lam utiliza os tradicionais elementos do wuxia, o gênero literário genuinamente chinês, a fim de explicar a ascensão de um mito, por razão à primeira vista banal.

Em 1917, num pequeno vilarejo em Yunnan, sudoeste da China, uma família desperta para mais um dia de trabalho na terra ainda muito longe da riqueza que a faz admirada em todo o planeta em nossos dias. Com calma, Chan revela as muitas faces de Liu Jinxi, o camponês de bons modos cheio de segredos vivido por Donnie Yen numa performance marcada por seus altos e baixos. Separada por cem anos do progresso de hoje, a China era um lugar violento como outro qualquer, com salteadores impiedosos, o que o diretor faz questão de deixar claro numa das sequências mais convincentes do longa, no primeiro ato, rechaçados com golpes de katana precisos o bastante para fazer voar orelhas.

Pode ser que esse homem modesto seja o último remanescente da dinastia Qing, a última casa imperial da China, que se manteve no poder por 268 anos, entre 1644 e 1912. Composta pelos manchus, etnia minoritária e nômade vinda do leste da Ásia, a dinastia Qing leva oito anos até se estabelecer de fato, com a conquista de Pequim. Os Qing são responsáveis por feitos históricos ousados, como persuadir o imperador chinês Shunzhi a abrir frentes de batalha contra reinos contíguos e dominá-los.

A escala de mando e tomada de territórios chinesa não encontra resistência, até se deparar com o rei Injo, vivido por Park Hae-Il, o 16° monarca coreano pela dinastia Joseon. Chan planta um sem-fim de elucubrações na cabeça da audiência, sobrando a mais plausível, aquela que insinua que Liu faz o que faz apenas para manter a salvo a mulher, Ayu, de Tang Wei, e os dois filhos pequenos, dedicados à fabricação de papel. Todos na aldeia pensam assim, exceto Xu Baijiu, o investigador encarnado por Takeshi Kaneshiro. Nesse momento, “Dragão” assume com gosto sua porção thriller, mencionando o envolvimento do anti-herói de Yen com os 72 Demônios, facção entre mística e justiceira que não cansa de aterrorizar Yunnan — e na qual se oculta a engenhosa guinada final.


Filme: Dragão
Direção: Peter Ho-Sun Chan
Ano: 2011
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.