Coisas verdadeiramente insondáveis se passam entre um homem e uma mulher que decidem viver juntos, e essa equação torna-se tanto mais inexpugnável quando da chegada dos filhos, que ou unem de uma vez por todas um casal à beira de seus tão particulares desesperos, ou os separa, por razões que só mesmo os dois conseguem alcançar. Fares Fares usa de sutileza mesmo numa história entre absurda, triste, violenta e quase inverossímil ao rodar “Um Dia e Meio”, saída de uma notícia de jornal que o diretor leu no passado. Com toda a cautela, Fares esmiúça algumas das possíveis justificativas que embalaram o fracasso do relacionamento sobre o qual se debruça seu filme, e o público nota que ele de fato sabe muito bem do que está falando.
À frente de seu primeiro longa, o sueco-libanês dá a exata dimensão de angústia ao drama de um homem que, já fora de sua terra, sente-se ainda mais sem chão, ferido em sua dignidade e conspurcado pelo ultraje de dependências de várias naturezas no momento em que se dá conta de que querem subtrair-lhe seu bem maior, o único de que não pode renunciar.
Um homem de azul caminha com uma mochila grená nas costas. Entra num centro de saúde, dirige-se à recepcionista, lhe diz que quer falar com uma tal Louise, e mesmo em se tratando de um assunto pessoal, tem de aguardar sua vez. Ele tira a senha de número 59, tenta não pensar no calor dos dias abafados do verão na Suécia, aguarda o tempo necessário para imaginar que foi catapultado para algum dos romances de Beckett e quando finalmente será atendido, fica sabendo que Louise está ocupada demais para vê-lo.
A introdução, brilhante em sua astúcia em ocultar o suspense, capta o interesse do público, que até pode intuir o que está havendo e o que vai se anunciar, mas não deixa de ser tomado pela surpresa ao constatar que Louise e Artan, aquele sujeito à primeira vista inofensivo do princípio da cena, a essa quadra dos acontecimentos já tachado como um vilão quase diabólico, partilhavam um lar e uma vida, mas não chegam a um acordo a respeito da guarda da pequena Cassandra, a filhinha dos dois.
O roteiro, escrito por Fares e Peter Smirnakos, vai cada vez mais fundo na truculência do anti-herói, com Aleksej Manvelov completamente absorto pela dialética do personagem, em certos lances tendo mesmo o condão de justificar a abjeção do extremismo de Artan, que apenas responde à desumanidade da ex-mulher, que talvez até se arrependa, não de ter afastado a menina do pai, mas por agora ter de dar explicações convincentes à opinião pública quando o pesadelo dos três chegar ao fim. Alma Pöysti é um contraponto à altura do talento de Manvelov, e as sequências no carro, numa viagem que tem tudo para acabar mal, juntam o diretor na pele de Lukas Malki, o negociador que encaminha o caso de uma forma de que só mesmo os suecos são capazes.
Filme: Um Dia e Meio
Direção: Fares Fares
Ano: 2023
Gêneros: Ação/Drama/Suspense
Nota: 9/10