A solidão é muito mais que apenas a vontade de estar só. Há passagens na vida de cada homem, célebre ou ordinário à náusea, em que urge retirar-se do mundo, ainda que pelo espaço de um instante, para cometer feitos heroicos. É preciso esquecer muito para se lembrar do pouco que importa; é forçoso mergulharmos no mais fundo de nós a fim de saber para onde devemos ir, e esse é o mandamento tácito e definitivo em “O Pálido Olho Azul”, enredo que ultrapassa o básico da narrativa de suspense. Valendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper ressuscita o interesse por um dos mais ousados escritores já produzidos pelo gênero humano, enquanto rechaça o banal escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi desfaz todo questionamento sobre as pretensões de Cooper, levando o espectador para o cenário, tão tétrico quanto lindo, do Vale do Hudson, nas cercanias da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, e se encarregando de deixar o clima particularmente lúgubre.
Adaptado de um romance do americano Louis Bayard, o roteiro do diretor lança mão do frio para fazer com que seus personagens circulem por lugares cheios dessa beleza diabólica que assusta, mas que também mesmeriza. Takayanagi congela o público numa atmosfera de pânico, angústia e magia, e Cooper vai familiarizando quem assiste com a trama opulenta que elabora. Na então recém-inaugurada Academia Militar de West Point, o cadáver de um tal cadete Fry é descoberto, mas o que parecia se tratar de um autocídio logo vira o mistério de onde o diretor-roteirista salta a fim de esmiuçar outras possibilidades em seu texto no decorrer de mais de um par de horas. O assassino tem um fetiche entre doentio e engenhoso, perenizado graças a um método pleno de destreza. Nesse momento, chegam à história o Augustus Landor de Christian Bale, um ermitão cuja filha fora viver com um namorado, e ninguém menos que Edgar Allan Poe (1809-1849), aqui na pele de um improvável jovem oficial que se dava ao luxo de escrever poesia com um diletantismo criminoso, trocadilhos à parte.
É a experiência de Poe com os versos e a gente estranha que se investe dessa maldita ocupação a responsável por apontar o possível homicida, e profligada a necessidade de fechar esse arco, Cooper fica livre para trabalhar as entrelinhas de seu filme, concentrando-se na amizade de Landor e o Homem da Machadinha. A performance mediúnica de Harry Melling arranca risos e, por evidente, lágrimas quando seu personagem, sutil como um gato negro, se acerca daquele parceiro eventual, compreendendo-o e enxergando-se em sua triste figura. À medida que o crime que dá azo ao longa torna-se próximo da solução, mais se conhece a alma sofrida de um gênio enclausurado em si mesmo, cujas deambulações poéticas acerca de “Lenore” (1843) — numa cena de realce com Lea Marquis, a mocinha possível interpretada por Lucy Boynton — explicam sua angústia fundamental. E o título.
Filme: O Pálido Olho Azul
Direção: Scott Cooper
Ano: 2022
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 9/10