“Carter”, do sul-coreano Jung Byung-Gil, brinca com inferências sobre uma humanidade vulnerável, refém da tecnologia, sua salvadora e seu carrasco. Essa é uma história pouco afeta a delicadezas já no começo, quando o roteiro, do próprio diretor e Jung Byeong-Sik, coloca seu protagonista no meio de tumultos numa sauna depois de um bom tempo desacordado. Jung menciona ter se inspirado em “Nikita: Criada Para Matar” (1990), o noir do francês Luc Besson, e em “A Vilã” (2017), de que “Carter” parece uma sequência, mas seu atual trabalho, a exemplo de quase tudo o que acontece na contemporaneidade, transcende o argumento da violência sem propósito ao revestir o anti-herói vivido por Joo Won de características de um politicamente correto desabrido, como ter de adequar-se à nova realidade que o tortura para não fazer vítima um garoto que encontra perdido como ele, lembrança de que um dia teve casa, família, história. Aos poucos, é incluída na trama a figura de uma menina, sua filha, a quem deseja rever de qualquer maneira, antes que advenha o pior, a si ou à criança. Por mais que sua situação já seja melancolicamente delicada.
A memória realmente nos apronta falsetas, mas muito pior que os ardis do cérebro — que, como tudo na natureza, têm alguma razão de ser, entre as quais nos livrar de resíduos inúteis (e tóxicos) do dia a dia – são as estratégias de que o homem lança mão na tentativa de burlar o passar do tempo. O diretor explicita esse incômodo que ronda a figura de Carter. Na verdade, o personagem-título chama-se Michael Bane, um agente secreto oscilando entre a CIA, a agência central de inteligência americana, e o NIS, o Serviço Nacional de Inteligência, da Coreia do Sul, subtraído no que pode ter de mais seu, ultrajado pela dependência de um dispositivo móvel que o situa não só no mundo como na própria vida.
Abastecendo-se de uma ponderação didática, Jung faz o espectador saber que Carter submete-se ao aparelho devido à macabra evidência de ter uma bomba instalada num dos dentes, e a partir de então seu calvário redobra. Das perseguições, filmadas sob enquadramentos circulares, opção estilística que torna a atmosfera de desajuste social ainda mais tangível, resulta o banho de sangue que marca a cena enquanto o personagem de Woo topa com os diversos antagonistas que o desafiam, nenhum digno de muito relevo. Este é um filme em que a história se sobrepõe a tudo, e essa história é a da inadequação de um homem a seu destino; em sendo assim, nem o possível romance com a Agnes de Camilla Belle, seu contraponto feminino na vigilância oculta de diligentes agressores, faz muito sentido — pelo menos não até que tenha sua vida de novo.
Há momentos em que a computação gráfica, nitidamente artificial, sufoca muito da emoção de “Carter”, mas o talento de Woo é capaz de manter o interesse do público sem nenhum esforço, ficando ainda mais óbvia a dependência do toque pessoal do ator para conferir alguma organicidade a uma narrativa que chama atenção pela frieza, pelo senso estético exagerado, pelo refinamento técnico até falto de prudência. A impressão que fica é que o desacerto geopolítico entre Coreia do Sul, Coreia do Norte e Estados Unidos já se tornou tão enfaroso que Jung imaginara uma outra abordagem, francamente vesana, também para este assunto.
Filme: Carter
Direção: Jung Byung-Gil
Ano: 2022
Gênero: Ação/Suspense
Nota: 8/10