Um dos filmes mais belos na Netflix é o curativo que seu coração precisa para restaurar sua fé no amor e na humanidade Divulgação / Pantaleon Films

Um dos filmes mais belos na Netflix é o curativo que seu coração precisa para restaurar sua fé no amor e na humanidade

Aludindo a um dos movimentos de maior adesão popular contra as tropas da Alemanha nazista, o venezuelano Jonathan Jakubowicz faz de “Resistência” o libelo contra a opressão de seus ancestrais durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), retratando a atuação de Marcel Marceau (1923-2007) como uma verdadeira epifania. Jakubowicz partilha com Marceau a urgência de fuzilar cosmovisões totalitárias com o arsenal que conhece, empreitada que pode não resultar tão bem-sucedida quanto há oito décadas, mas nem por isso dispensa quem que seja da boa guerra. Passados dez meses da iniciação de Marceau no caminho desbravado por Lívio Andrônico (280 a.C.–204 a.C.), o primeiro showman da história, aquele que viria a ser o maior mímico que o mundo já conhecera, o francês via-se obrigado a moldar as aptidões de que lançava mão na ribalta para manter-se vivo — e salvar quantos judeus conseguisse. Nascido numa família de ascendência judaica, Marcel Mangel nunca se furtou a combater a tirania daqueles tempos, sem que nunca tivesse-lhe sido necessário pegar em armas.

Na sua simplicidade, tolamente encarada como fácil, Marceau passou à História com um legado duplamente valioso. Em 9 de novembro de 1938, apenas um ano depois de Pablo Picasso (1881-1973) eternizar a barbárie da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) em Guernica (1937), Adolf Hitler (1889-1945) começava a desvelar seu sonho nefasto de dominar a Europa valendo-se da ideologia que colheu do esgoto de sua mente perturbada, no que, como sabemos, lamentavelmente teve êxito, ajudado pela força de sua imagem de político íntegro e sisudo — malgrado artista plástico diletante e de limitado talento ao cabo de uma experiência como garoto de programa eventual —, pela sempiterna carência de líderes orgânicos numa Alemanha que ainda remoía o rancor antissemita com a derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Grande Guerra, e, por evidente, pela convicção com que fazia parecer verdade seu delírio, sortilégio impossível sem a verve meticulosamente calculada e, ainda mais, graças à capilaridade do discurso, essa uma façanha de Joseph Goebbels (1897-1945), um de seus bruxos mais diabólicos. Ao passo que Hitler colocava suas patas sobre o Ocidente, Marceau subia ao palco de um cabaré decadente de Estrasburgo, sua cidade natal, no nordeste da França, para uma de suas primeiras apresentações num espetáculo solo de teatro mudo, ou mímica. Ele tinha apenas quinze anos.

Mímico acidental no princípio da carreira, Jesse Eisenberg encara Marceau de igual para igual, mas preservando a dimensão da figura histórica que tem diante de si. Confortável na pele de um mito, Eisenberg transmite a nítida sensação de apreender todas as agruras de um homem do espetáculo abrindo sua estrada com as dificuldades usuais, a despeito de hoje se travarem batalhas muito menos óbvias. Nesse aspecto, o texto de Jakubowicz aproveita bem as participações de Karl Markovics vivendo Charles, o pai açougueiro, pragmático como todo judeu e descrente das escolhas do imberbe Marcel, que usa um bigode postiço para imitar o Carlitos de Charlie Chaplin (1889-1977). Ainda no primeiro ato, o diretor estabelece uma ótima parceria entre Eisenberg e Markovics com piadas entre infames e saborosas sobre a incipiente jornada de Marceau como um ator de pantomimas — ou palhaço, como prefere Charles — e, naturalmente, a religião dos dois. Decerto o mundo seria uma sucessão de ambientes irrespiráveis se não fossem as diversas manifestações artísticas que o homem, malgrado envolto na hediondez tamanha da própria natureza, conseguiu concretizar. É difícil saber o que seria do mundo sem a delicadeza da arte e, principalmente, sem a beleza de sua iluminação nos tempos mais sombrios da história. O britânico Roger Scruton (1944-2020), reconhecia, por óbvio, a importância da violência das máquinas para o desenvolvimento do homem, para que pudesse vencer o desafio da miséria e da fome no rescaldo de tempos de privação e morte, a exemplo do que se constatou nos primeiros anos de finda a Segunda Guerra. Entretanto, Scruton reconhecia que com a sofisticação dos equipamentos e técnicas que aceleraram a produção fabril de modo irreversível e determinante, o mundo fora perdendo muito de sua ingenuidade, sua ternura e, o principal, de sua beleza num processo que se alonga desde então e quiçá jamais cesse. A guerra passa como se uma nuvem cor de chumbo pela narrativa de Jakubowicz, representada ao longe, como no diálogo entre Marceau e Klaus Barbie, o oficial de Hitler interpretado com sincera acrimônia pela versatilidade de Matthias Schweighöfer. Eisenberg, Markovics e Schweighöfer, nessa ordem, compõem a síntese de uma das mais belas (e desconhecidas) histórias sobre um homem que conseguiu ser um dos maiores artistas de seu tempo e um herói de guerra cujo vulto a bruma do esquecimento teima em empanar. A arte salva, como bem argumenta Scruton. E a verdadeira arte é corajosa.


Filme: Resistência
Direção: Jonathan Jakubowicz
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia/Biografia
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.