Um dos melhores filmes brasileiros do século está na Netflix Divulgação / Imagem Filmes

Um dos melhores filmes brasileiros do século está na Netflix

Quando a beleza se cansa de sua eterna incumbência de salvar o mundo, a alegria a substitui — ao menos até que chegue o próximo boleto, a saúde falte, o almoço de família degenere num homérico desarranjo e a segunda-feira nos lembre da maldição divina, mais lutuosa para uns, de se ganhar o pão com o suor do rosto. É exatamente desse jeito, com a cara pintada de coragem e falsos risos que Benjamin, o saltimbanco triste de “O Palhaço” se defende neste vale de lágrimas, vendendo um artigo raro e valioso que já não lhe pertence, como se cultivasse um imenso deserto. Selton Mello, o personagem-título e diretor, busca em reminiscências de infância e apuros de gosto ao longo da invejável carreira, de Renato Aragão a Jacques Tati (1907-1982), passando por Oscarito (1906-1970) e Federico Fellini (1920-1993), a composição sob medida para um artista pobre e desalentado, que vai-se contaminando de um invencível niilismo frente ao existir e suas adjacências, mas que dá mais uma talagada no cálice amargo da vida, decerto esperando que o próximo show seja melhor.

Boias-frias se espremem numa beira de estrada de chão arrancando o sustento no cabo do facão enquanto a Rural vermelha passa ao lado, subindo a poeira. O roteiro de Mello e Marcelo Vindicato prima por explorar essas imagens que falam por si sós, especialmente na abertura: este é um filme de silêncios, ainda que sobrepostos a quadros de um frenesi que vai maturando ao longo de hora e meia, arrefecendo e ficando mais cálido ao sabor de acontecimentos ora banais, ora graves, mas nunca soltos. O circo Esperança arma sua lona no meio de uma serra na zona rural de Passos, extremo sul de Minas Gerais, e antes da estreia, Benjamin vai tomando pé das pequenas urgências dos bastidores, como um ventilador para Lola, a atiradora de facas interpretada por Giselle Motta. Há um traço qualquer da melancolia de “Feliz Natal” (2008), a primeira incursão de Mello por trás das câmeras, em “O Palhaço”, mas o diretor-protagonista trata de conferir identidade própria a este trabalho à medida em que Benjamin vai se transformando em Pangaré, o nome de guerra com que se apresenta no picadeiro, e tira da plateia os risos que parecem tê-lo abandonado já há algum tempo. Essa questão da identidade é, a propósito, mote de várias passagens lapidares, uma vez que seu RG está literalmente se desmanchando e ele teme parar na delegacia local, chefiada por Justo, com Moacyr Franco muito bem num papel dramático, o que termina acontecendo. Diante do público, Pangaré é a personificação do êxtase fabricado e da catarse mais visceral, mormente nas cenas em que divide com Valdemar, ou Puro Sangue, o decano circense de Paulo José (1937-2021).


Filme: O Palhaço
Direção: Selton Mello
Ano: 2011
Gêneros: Drama/Aventura
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.