Se o coração tem razões que a própria razão desconhece, a vida íntima de um casal oculta segredos que nem o mais fescenino dos Boccaccios ou o mais visionário dos Nelsons atreve-se a revelar. Replicando muito do que o cinema já sentenciou a respeito do tema, Adrian Lyne oferece com “Infidelidade” um novo banquete para os sentidos ao cascavilhar o desejo mais impublicável de uma mulher e os rancores que partilha com o marido, manifestos depois de uma aventura de que só ela usufrui. Especialista nessas histórias tortas de amores malditos, ao roteiro de Alvin Sargent (1927-2019) e William Broyles Jr., Lyne faz um apanhado que funde “A Mulher Infiel” (1969), dirigido por Claude Chabrol (1930-2010), a outras pérolas correlatas, a exemplo de “A Bela da Tarde” (1967), de Luis Buñuel (1900-1983), tudo como se ávido por esfregar-nos algumas verdades no rosto e exigir nossa reflexão sobre condutas destemidas só a uma apreciação ligeira, mas de que só brotam sofrimento, agonia, violência e crime, tudo embrulhado na seda fina da luxúria à que nos condenamos gostosamente.
No Condado de Westchester, pela casa branca e imensa à beira do Hudson subentende-se que ali vive uma família pacata e na harmonia dos querubins. Casados há alguns anos, Edward e Connie Sumner aparecem sempre dispostos e de bem um com o outro, e pelo que os bons desempenhos de Richard Gere e Diane Lane mostram, não temos motivo para desconfiar de verdade de sua placidez, estendida para Charlie, o filho de nove ou dez anos interpretado por Erik Per Sullivan. Num dia tranquilo, Connie se desloca até o centro de Nova York para comprar o que parece material de papelaria e artigos de decoração — as urgências de uma mulher como ela —, e pouco antes de voltar ao subúrbio, é surpreendida por um vendaval como raras vezes presenciara, justa metáfora de Sargent e Broyles Jr. para prenunciar o que acontece no início do terceiro ato. Em meio a golpes de ar cada vez mais violentos, a personagem de Lane impreca contra os taxistas que recusam-se a obedecer a seu chamado, se atrapalha com os embrulhos, topa com um estranho, vai ao chão. Quando Éolo se resolve a aplacar sua ira, está na porta de Paul Martel, o bibliófilo de ofício e casanova ocasional encarnado por Olivier Martinez, os joelhos lavados em sangue. Ele se oferece para desinfetar os ferimentos, diz que não é nenhum psicopata, e o que vem a seguir é tão previsível quanto instigante, com a atriz principal versátil como sempre, pulando de mãe de família tediosa a vamp insaciável, disposta a manter um caso romântico sui generis com Martel, em que juras de fidelidade (risos incontidos) e sexo no banheiro do café num prédio da vizinhança em que o amante mora partilham a mesma cama, com a licença do trocadilho.
Gere volta à cena no apartamento do galã sem sorte degringolando a tragédia que dá azo ao filme, num acesso de civilizada fúria — tão civilizada que não se ouve um grito de parte a parte. A ação dramática não vai muito além disso, e, no entanto, Lyne faz de “Infidelidade” um de seus melhores trabalhos, mormente por ilustrar com imagens repulsivamente desconfortáveis os meandros de um casamento, a exemplo das tomadas de um lixão enquanto os Sumner estão à mesa, nisso assemelhando-se muito mais a Buñuel que a Chabrol. O doce charme da burguesia fede às vezes.
Filme: Infidelidade
Direção: Adrian Lyne
Ano: 2002
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10