Vira e mexe, namoros, casamentos, separações e divórcios rondam as mentes frenéticas de cineastas, que se valem de tudo quanto apreendem da sociedade de seu tempo, do que podem observar de gente próxima, daquilo que imaginam ser o corriqueiro e, claro, de sua experiência para definir o que convém ou não num relacionamento dito amoroso. “A Lula e a Baleia” é o que Noah Baumbach, um dos grandes cronistas da vida privada da classe média americana, que, guardadas as devidas proporções, cabe com ou outro ajuste a pares de todos os estratos sociais em qualquer lugar do mundo. E ele sabe o que diz. Filho de Jonathan Baumbach (1933-2019), um reconhecido teórico da literatura, e de Georgia Brown, crítica de cinema do jornal “The Village Voice”, fora de circulação desde 2017, o diretor passa para a tela as agruras de dois intelectuais em sentidos opostos: enquanto um tenta preservar o fiapo de glória que lhe resta, a outra sobe de um jeito até displicente — e ambos sucumbem à vaidade, assistindo impávidos ao esfacelamento de uma história. Baumbach decupa um enredo de intensidade progressiva concentrando-se nas pequenas misérias que passam a fazer parte do cotidiano da família, e malgrado sobrevivam, todos desfrutam gostosamente de sua cota de martírio.
Pela sequência de abertura, o diretor já faz questão de colocar seus quatro personagens centrais nas posições que lhes competem. Bernard Berkman e a mulher, Joan, disputam uma partida de tênis com os filhos, Frank e Walt, e nesse aparentemente inofensivo programa em família, já surgem pistas do que acontece pouco depois e ao longo de boa parte dos oitenta minutos seguintes: um homem e uma mulher envenenados pela mágoa destilam seus rancores diante de duas crianças a quem deveriam proteger, e ao passo que Bernard, o sujeito entre absorto por um tácito despotismo e a psicopatia mais hedionda, de Jeff Daniels, exerce seu requinte para humilhar a esposa, Laura Linney põe para fora expressões e trejeitos milimétricos, que reestudados depois, fazem todo o sentido, explicando — mas nunca servindo de justificativa — a sua leviandade. À mesa do jantar, Walt pergunta a Bernard, um romancista lutando contra o ostracismo depois de livro de sucesso publicado já há algum tempo, o que ele pensa sobre “Uma História em Duas Cidades” (1859), e ouve que se trata de Dickens “menor”, numa fase um tanto comercial demais, popular demais. A graça que o comentário acerca de um dos escritores mais buscados de seu tempo, de fato bastante lido, poderia suscitar — em especial de um colega quase anônimo — se liquefaz com o diagnóstico involuntário (e preciso) do caçula sobre o casamento de Bernard e Joan, com Owen Kline e Jesse Eisenberg num saboroso embate a fim de ver quem mais rouba a cena. A contundência improvável da análise de Frank dá azo para que Ivan, o professor de tênis interpretado por William Baldwin, orbite o núcleo dos Berkman, inclusive telefonando para Joan a horas mortas enquanto ela trabalha num texto que pretende enviar à “The New Yorker”. Numa dessas, Bernard a surpreende quase por atender a uma ligação, momento em que o diretor-roteirista fecha o arco central de seu filme.
Claro que Bernard e Joan se separam, e claro que os dois garotos entram em parafuso, até muito mais que o razoavelmente crível a despeito de quaisquer circunstâncias traumáticas. Se por um lado os conflitos do personagem de Eisenberg, forçado a amadurecer — e, evidentemente, dando violentas cabeçadas em suas próprias relações com o sexo oposto — emanam uma bem-vinda carga de naturalidade, por outro, os apuros de Frank, acometido de um estranho distúrbio que o leva ao Conselho Disciplinar de seu colégio, fede a apelação. A propósito, as duas garotas que entram na história o fazem por intermédio de homens, mas assim mesmo Anna Paquin e Halley Feiffer acrescentam uma dose extra de caos na pele de Lili, a aluna com quem Bernard mantinha um caso sólido, e Sophie, a namorada de Walt, a quem replica o tratamento opressivo que o pai dispensava a Joan. A derradeira sequência corrobora o nonsense de “A Lula e a Baleia”, com cada bicho ocupando o lugar que merece na cadeia alimentar. Não obstante serem menores que os cetáceos, cefalópodes são muito perigosos.
Filme: A Lula e a Baleia
Direção: Noah Baumbach
Ano: 2005
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10