“Django Livre” é outro testemunho da audácia de Quentin Tarantino. Desde a estreia do adoravelmente caótico “Cães de Aluguel” (1992), o diretor se propõe voos em horizontes cada vez mais amplos, transcendendo os limites do convencional e dando de ombros para o que esperam dele. Nessa egotrip, em que o público apenas embarca, sem saber direito para onde está indo, há sempre uma minudência que passa despercebida mesmo depois de uma década de lançado o filme, à qual junta-se uma reviravolta que pega-nos no contrapé, mas tarantinescamente, sem que se entenda o que diretor pretende, afinal. Às vezes, o óbvio é a própria esfinge que nos devora sem clemência.
“Os Oito Odiados” (2015) é outra das pérolas do diretor com que pode-se atilhar o filme de 2012, mormente se se toma cada personagem em seu próprio universo, hermético, quase intraduzível, pleno de urgentes questões que, lamentavelmente, chegaram a este nosso vesano século 21. No centro do palco, um homem escravizado: o personagem-título do surpreendente Jamie Foxx coleciona uma vida inteira de passagens amargas, forçado a uma servidão ultrajosa — que por seu turno presta-se a gatilho da nova história que almeja compor para si. O texto elabora a dor excruciante de Django de modo a se esperar uma virada, claro, mas o pulo do gato do diretor-roteirista é cozinhar em seu anti-herói a fúria de uma história roubada, que só poderia continuar mediante a subserviência, a incerteza, o medo, fantasmas assustadoramente concretos que grassaram entre afro-americanos até os anos 1960, quando se intensificaram as iniciativas de engajamento de cidadãos comuns, a exemplo do reverendo batista Martin Luther King (1929-1968) e do militante radical Malcolm X (1925-1965), extremos opostos de um mesmo exército, capazes de arrastar multidões com sua oratória e sua impertinência. O justiceiro de Foxx é o Martin Luther King e o Malcolm X possível a seu tempo, e no momento em que a audiência se dá conta de que o protagonista vai, sim, bancar essa odisseia solitária em busca do que é seu e nunca deveria ter-lhe sido privado, começa o filme dentro do filme, ainda mais misterioso e ainda mais revelador.
O argumento do negro escravizado como base da depauperada economia dos Estados Unidos durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) vem à baila nas elucubrações nada ingênuas de Tarantino, que jamais abandona seu mártir e prepara diante de nossos olhos, malgrado não o percebamos, a transformação de Django, de vassalo num Mississípi ardendo no fogo da convulsão social a agente indelével da mudança pela qual todo o país ansiava, derramando sangue a fim de virar a chave do regime escravagista para a concessão de liberdades individuais aos pretos, que, o diretor faz entender, constituir-se-iam fonte de lucros bem mais expressivos sem seus grilhões.
Com “Django Livre” Tarantino continua a subverter o estabelecido e suas narrativas politicamente corretas (e banais). Este é um filme que não se peja de demonstrar o quão complexos são os temas batidos que só conhecemos pelo que faculta-nos a indústria cultural, a exemplo da nuvem cinzenta que paira sobre a mineira Francisca da Silva de Oliveira (1732-1796), a Chica da Silva, negra alforriada que manteve cativas pessoas de sua cor para seu serviço e abuso, oprimindo-os e infligindo-lhes penitências supliciantes. Essa quiçá seja a lição que o diretor tenta pincelar, no seu niilismo quase doutrinário que confirmou-se com o passar dos anos.
Filme: Django Livre
Direção: Quentin Tarantino
Ano: 2012
Gênero: Faroeste/Ação
Nota: 10