Reconheça-se ou não, foi por meio de combates armados que a humanidade alcançou seus grandes feitos, entre os quais bater tiranos que se pretendiam os donos do mundo, levando a termo anos de governos despóticos, encantando o povo com juras vãs de progresso ao passo que dizimavam uma etnia com o silêncio cúmplice da comunidade internacional. “O Resgate do Soldado Ryan” explora um elemento aparentemente solto do contexto lato da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), até que, por volta do início do terceiro ato, tudo começa a fazer sentido. Declarar a interrupção da paz contra quem quer que seja nunca é uma medida que se toma da mão para a boca, mas é, em muitas circunstâncias, a única coisa a se fazer para fugir da desonra, que, conforme ensina Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido quando do sexênio do mais importante (e cruento) conflito bélico do século 20, encarniça-se de um povo que não encampa as causas pelas quais se deve lutar. Pundonor, brio, nobreza e intrepidez são conceitos absolutos, mormente na frente de batalha, e ao longo de cinquenta anos, são pródigos os exemplos em que Steven Spielberg tirou de sua imensa cartola produções que decerto mudaram a compreensão do homem sobre si mesmo, principalmente nas quadras de nosso instável processo civilizatório no transcurso das últimas sete décadas e meia, que, coincidência ou não, redundam em seu tempo de vida.
Quase sempre, foi por meio dos enfrentamentos entre forças inimigas que a humanidade viu nascer seus grandes heróis, homens e mulheres que se vestiram da aura de personalidade da história graças a um desempenho de bravura memorável ao longo de uma série interminável de confrontos. O texto de Robert Rodat vibra nesse diapasão partindo, inclusive, do título, que tanto no original como nas versões em português e diversos outros idiomas, aludem à ideia de encontro, volta a um ponto de fim e recomeço, salvação. Ryan, entidade quase mitológica com que Rodat e Spielberg comunicam-se com o velho olimpo da Hollywood da Era de Ouro, é, em verdade, a metáfora da supremacia do mistério que integra o coração do homem domesticando os seus tantos receios e inconstâncias, que lhe brotam do peito, decerto, mas associam-se também com o pânico que infunde-lhe o mundo, a vida, o fado, o desconhecido. Matt Damon passa um bom bocado do filme nas sombras, sendo alvo ora de veneração, ora de pena e, claro, ora de achincalhe e mesmo ira dos outros homens, mandados à praia de Omaha, faixa de litoral agreste que se estende por oito quilômetros na Normandia, no norte da França.
Houve muitos outros Ryans, garotos simples perdidos ou mortos em todas as plagas por onde os Aliados se moveram tentando deter o avanço de Hitler, e esse é o gancho de que o diretor se socorre a fim de arrancar o verniz de romanceação e desmistificar um aspecto por anos ignorado. James Francis Ryan foi a versão cinematográfica do sargento de infantaria Frederick William “Fritz” Niland (1920-1983), o quarto filho de uma família irlandesa-americana a lutar na Segunda Guerra, e o único a ter conseguido escapar da morte. Para elevar o moral da tropa e conferir um caráter menos impessoal ao banho de sangue em Omaha, o alto escalão do Exército dos Estados Unidos despacha o regimento chefiado pelo capitão John H. Miller, com Tom Hanks marchando seguro entre o tom paternal e a ansiedade a paredes-meias da neurose, conduzido um pelotão dessorado, combalido pela fome, com homens que se estraçalham sob a mira de franco-atiradores invisíveis de quando em quando num mar de lama, sangue e morte. A sequência dos comandados de Miller rebelando-se contra as ordens da cúpula do Exército americano e investindo contra um ninho de Maschinengewehr 42, as temidas MGs alemãs, reafirma a aura distópica da guerra, à Francis Ford Coppola de “Apocalypse Now” (1979), ou um espelho do Ridley Scott de “Falcão Negro em Perigo” (2001), ao passo que Spielberg, criativo como nunca, tem o condão de pincelar sua assinatura em detalhes soberbos, como o trabalho de Janusz Kaminski, que dá sensação de uma longa reportagem e empresta coesão a todo aquele gigantesco painel de misérias humanas, um dos predicados que concorreram para seus Oscars, de Melhor Fotografia e Direção, respectivamente.
Demorei a conhecer “O Resgate do Soldado Ryan”, um pouco por já ter assistido a todos os filmes de guerra que importavam até aquele enfumaçado 1998, quando eu era um lobisomem juvenil, talvez por isso. Tinha um preconceitozinho com Spielberg, que me encantara com “E.T. O Extraterrestre” (1982) e, claro, “Jurassic Park — Parque dos Dinossauros” (1993), mas me fora cansando com o besteirol pseudocientífico e intelectualoide das produções “Indiana Jones”, caça-níqueis que, penso, não condizem com sua genialidade — e estão de volta, lamentavelmente. Reconciliei-me com ele no despretensioso e mesmerizante “Prenda-Me se For Capaz” (2002), e algum tempo depois, prestei atenção à história do pracinha americano largado na França, muito graças à Hanks, essa força da natureza capaz de transformar filmes medianos em clássicos. Não é o caso de “O Resgate do Soldado Ryan”, épico de semideuses que descem à terra para merecer seu louvor.
Filme: O Resgate do Soldado Ryan
Direção: Steven Spielberg
Ano: 1998
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 10