No encerramento de mais um dia de caos, “Quatro Histórias de Desejo 2” faz um registro de Mumbai e de sua noite, apresentando-se uma à outra pródigas de objetivos impublicáveis. Homens que sabem avaliar o bordado das roupas; casamentos que acabam por falta de amor e outras necessidades; esposas que se deixam subjugar por seus maridos, atitude que julgam ser sinal de benquerença, mas que se afina mais à ideia de posse e cerceio; hábitos que reprimem manifestações públicas de carinho entre indivíduos de gêneros distintos, ampliando ainda mais a distância entre homens e mulheres; autoridades omissas e preconceituosas que menoscabam e tripudiam das necessidades da mulher de nossos dias: a cidade é uma eterna contradição, nutrida pelos anseios de prazer, apaixonamento, volúpia, sexo fácil e sem limite. As luzes baixas pedem conversas mais despretensiosas e amenas, regadas a uma bebida que se sorve devagar, ao passo que os traficantes se multiplicam, apregoando a promessa de felicidade leviana pela qual muitos acabam se vendendo. Táxis continuam indo e vindo num balé orgânico, sem ensaio e sem hora para terminar; prostitutas se oferecem, instadas por cafetões que jamais deixam-se ver; em cada esquina há um show em que música e concupiscência partilham os mesmos lençóis, tudo como pensado para fisgar corações solitários e bolsos polpudos.
Esses são alguns recortes da sociedade indiana num país que ruma para o desenvolvimento econômico cada vez mais certo, malgrado incapaz de livrar-se de tradições que aprisionam a mulher no calabouço frio e escuro do desprezo a sua própria individualidade, mesmo naqueles momentos em que, a uma apreciação ligeira, elas estão no comando. Apresentando cada um a seu modo um ponto de vista acerca da questão feminina em seu país, os diretores Konkona Sen Sharma, Sujoy Ghosh, R. Balki e Amit Sharma montam “Quatro Histórias de Desejo 2” de forma a compor uma trama só, pautada pela relação entre a mulher e o que ela compreende por sexo. O filme presta-se a uma antologia de contos sem título sobre os anseios femininos neste início de século, quiçá antevendo transformações, ainda que pontuais, ou voltando os holofotes para o que deve sair do limbo e ocupar o centro das atenções. O roteiro se debruça sobre o que tem sido visto na Índia como liberdade sexual, frisando nos comportamentos que subvertem a moralidade, sempre deixando claro que deve haver alguém que manda e um outro — ou melhor, uma outra — que obedece, e, em sendo assim, o conceito de que existe um lado que dá as ordens e outro que se atém a cumpri-las é a base mesma das relações patriarcais de liderança. Na Índia, o poder mistura-se com o sexo.
Não por acaso, no primeiro segmento, o mais longo e mais bem elaborado, dirigido por Konkona Sen Sharma, os personagens de Angad Bedi e Tamannaah Bhatia precisam enfrentar a sabatina de praxe de dois jovens quando resolvem se casar. De parte a parte, os pais de um e da outra vão como marcando território, enaltecendo as virtudes dos filhos enquanto tentam e até se esmeram em descobrir possíveis falhas de caráter que, decerto, aconselhariam o rompimento. A moça cozinha de acordo com os manuais da gastronomia fitness, evitando o açúcar e dando preferência à batata doce; o rapaz acabou de chegou ao posto de diretor executivo da companhia em que trabalha, argumento que a diretora analisa sob uma perspectiva leve, mas fazendo questão de ressaltar seu teor irônico. Nesse mesmo diapasão, também vibra a avó, papel de Neena Gupta, talvez a única figura sensata ali; todos atentam para a compatibilidade de planos e ambições dos tipos encarnados por Bedi e Bhatia, mas a velha, expedita, sabe que, num contrato social tão rico de idiossincrasias como a vida a dois entre os indianos, um componente em especial tem muito mais importância.
Nas outras três narrativas, o amor, o sexo e claro, o casamento — e também o adultério — surgem em enredos bem urdidos, mas algo elementares e previsíveis. No mais, o saldo é positivo: só em assumir o risco de balançar tabus resistentes de uma sociedade erótica, mas envergonhada (e usar de mais comedimento no oba-oba nonsense dos números musicais), “Quatro Histórias de Desejo 2” já vale.
Filme: Quatro Histórias de Desejo 2
Direção: Konkona Sen Sharma, Sujoy Ghosh, R. Balki e Amit Sharma
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 8/10