Continuação de um dos maiores sucessos eróticos do cinema indiano acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

Continuação de um dos maiores sucessos eróticos do cinema indiano acaba de estrear na Netflix

No encerramento de mais um dia de caos, “Quatro Histórias de Desejo 2” faz um registro de Mumbai e de sua noite, apresentando-se uma à outra pródigas de objetivos impublicáveis. Homens que sabem avaliar o bordado das roupas; casamentos que acabam por falta de amor e outras necessidades; esposas que se deixam subjugar por seus maridos, atitude que julgam ser sinal de benquerença, mas que se afina mais à ideia de posse e cerceio; hábitos que reprimem manifestações públicas de carinho entre indivíduos de gêneros distintos, ampliando ainda mais a distância entre homens e mulheres; autoridades omissas e preconceituosas que menoscabam e tripudiam das necessidades da mulher de nossos dias: a cidade é uma eterna contradição, nutrida pelos anseios de prazer, apaixonamento, volúpia, sexo fácil e sem limite. As luzes baixas pedem conversas mais despretensiosas e amenas, regadas a uma bebida que se sorve devagar, ao passo que os traficantes se multiplicam, apregoando a promessa de felicidade leviana pela qual muitos acabam se vendendo. Táxis continuam indo e vindo num balé orgânico, sem ensaio e sem hora para terminar; prostitutas se oferecem, instadas por cafetões que jamais deixam-se ver; em cada esquina há um show em que música e concupiscência partilham os mesmos lençóis, tudo como pensado para fisgar corações solitários e bolsos polpudos.

Esses são alguns recortes da sociedade indiana num país que ruma para o desenvolvimento econômico cada vez mais certo, malgrado incapaz de livrar-se de tradições que aprisionam a mulher no calabouço frio e escuro do desprezo a sua própria individualidade, mesmo naqueles momentos em que, a uma apreciação ligeira, elas estão no comando. Apresentando cada um a seu modo um ponto de vista acerca da questão feminina em seu país, os diretores Konkona Sen Sharma, Sujoy Ghosh, R. Balki e Amit Sharma montam “Quatro Histórias de Desejo 2” de forma a compor uma trama só, pautada pela relação entre a mulher e o que ela compreende por sexo. O filme presta-se a uma antologia de contos sem título sobre os anseios femininos neste início de século, quiçá antevendo transformações, ainda que pontuais, ou voltando os holofotes para o que deve sair do limbo e ocupar o centro das atenções. O roteiro se debruça sobre o que tem sido visto na Índia como liberdade sexual, frisando nos comportamentos que subvertem a moralidade, sempre deixando claro que deve haver alguém que manda e um outro — ou melhor, uma outra — que obedece, e, em sendo assim, o conceito de que existe um lado que dá as ordens e outro que se atém a cumpri-las é a base mesma das relações patriarcais de liderança. Na Índia, o poder mistura-se com o sexo.

Não por acaso, no primeiro segmento, o mais longo e mais bem elaborado, dirigido por Konkona Sen Sharma, os personagens de Angad Bedi e Tamannaah Bhatia precisam enfrentar a sabatina de praxe de dois jovens quando resolvem se casar. De parte a parte, os pais de um e da outra vão como marcando território, enaltecendo as virtudes dos filhos enquanto tentam e até se esmeram em descobrir possíveis falhas de caráter que, decerto, aconselhariam o rompimento. A moça cozinha de acordo com os manuais da gastronomia fitness, evitando o açúcar e dando preferência à batata doce; o rapaz acabou de chegou ao posto de diretor executivo da companhia em que trabalha, argumento que a diretora analisa sob uma perspectiva leve, mas fazendo questão de ressaltar seu teor irônico. Nesse mesmo diapasão, também vibra a avó, papel de Neena Gupta, talvez a única figura sensata ali; todos atentam para a compatibilidade de planos e ambições dos tipos encarnados por Bedi e Bhatia, mas a velha, expedita, sabe que, num contrato social tão rico de idiossincrasias como a vida a dois entre os indianos, um componente em especial tem muito mais importância.

Nas outras três narrativas, o amor, o sexo e claro, o casamento — e também o adultério — surgem em enredos bem urdidos, mas algo elementares e previsíveis. No mais, o saldo é positivo: só em assumir o risco de balançar tabus resistentes de uma sociedade erótica, mas envergonhada (e usar de mais comedimento no oba-oba nonsense dos números musicais), “Quatro Histórias de Desejo 2” já vale.


Filme: Quatro Histórias de Desejo 2
Direção: Konkona Sen Sharma, Sujoy Ghosh, R. Balki e Amit Sharma
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.