Acredito piamente que, na biblioteca, os livros escolhem as pessoas. Eles analisam sua capa, sinopse, autor, e decidem se vale a pena ler aquele leitor. O livro que me leu escolheu-me no momento em que mais me senti uma folha em branco na minha vida: na lacuna entre o ensino médio e a faculdade. Durante meu semestre sabático compulsório, nas pausas entre os vestibulares e as aulas de cursinho, resolvi visitar semanalmente a biblioteca e me deixar à deriva para que um livro me pegasse emprestado. O sortudo da vez foi “O Apanhador no Campo de Centeio”. Apesar de ser um clássico, eu não fazia ideia do que se tratava, e justamente aí residem as melhores leituras. O excesso de palavrões, as descrições de situações extremamente banais de um adolescente de ensino médio e a vontade de ser inconsequente convenceram-me de que — salvo o egocentrismo — aquele livro era sobre mim e para mim. Era como se eu pudesse andar ao lado de Holden e não sentir nenhum estranhamento, apenas uma sensação de pertencimento misturada com suspiros de alívio — ah, com você também é assim? Ufa.
Assim como na vida de Holden, meus 17 anos foram repletos de muita energia, revolta, vontade de questionar toda e qualquer autoridade e simplesmente sair andando por uns dois dias. Porém, no meu caso, esses pensamentos ficaram apenas na teoria, correndo loucamente de lá para cá na minha cabeça. O livro talvez tenha mudado a minha vida quando invadiu meu ser e não arrumou a bagunça, apenas disse que isso fazia parte, que era um caos essencial. A formação da minha identidade não deveria ter prazo, meu projeto de ser humano não deveria estar pronto àquela altura, muito menos meu plano de carreira.
Quando o livro me devolveu à biblioteca, meu caminhar já era mais leve, como uma flutuação pela vida, com o entendimento de que a adolescência não é uma transição, é uma fase por si só e carrega consigo suas complexidades, dilemas, questionamentos e, acima de tudo, suas banalidades. E, apesar de estar quase me tornando arquiteta, o que eu queria mesmo era ser uma apanhadora no campo de centeio e tal.
Se você quer mesmo ouvir a história toda, a primeira coisa que você deve querer saber é onde eu nasci, e como que foi a porcaria da minha infância, e o que os meus pais faziam antes de eu nascer e tal, e essa merda toda meio David Copperfield, mas eu não estou a fim de entrar nessa, se você quer saber a verdade. Pra começo de conversa, isso tudo me enche o saco, e depois os meus pais iam ter duas hemorragias cada um se eu contasse algum negócio mais pessoal lá deles. Eles são pra lá de sensíveis com essas coisas, especialmente o meu pai. Eles são bacanas e tal — eu não estou dizendo que não —, mas também são sensíveis que é o diabo. Além de tudo, eu não vou te contar a droga toda da minha autobiografia nem nada assim. Só vou te contar essa coisa demente que me aconteceu lá perto do Natal do ano passado logo antes de eu ficar na pior e ter que vir pra cá pra relaxar um tiquinho. Quer dizer, foi só isso que eu contei pro D.B., e ele é meu irmão e tal. Ele está em Hollywood. Que não fica tão longe desse lugarzinho asqueroso aqui, e ele vem me visitar praticamente todo fim de semana. Ele vai me levar de carro quando eu for pra casa no mês que vem, quem sabe. Ele acabou de comprar um Jaguar. Uma daquelas coisinhas inglesas que fazem quase trezentos quilômetros por hora. Pagou quase quatro mil pratas. Ele está cheio da grana, agora. Antes não. Antes ele era só um escritor normal, quando morava em casa. Ele escreveu um livro de contos sensacional, O peixe-dourado secreto, caso você nunca tenha ouvido falar dele. O melhor conto do livro era “O peixe-dourado secreto”. Era sobre um menininho que não deixava ninguém olhar o peixinho-dourado dele porque ele que tinha comprado com a própria grana. Aquilo me matou. Agora ele está em Hollywood, o D.B., se prostituindo. Se tem uma coisa que eu odeio é cinema. Nem venha me falar de cinema.