O episódio da nova temporada de Black Mirror que todo mundo deveria assistir

O episódio da nova temporada de Black Mirror que todo mundo deveria assistir

A inteligência artificial é mesmo mais diabólica que santa. Essa é a opinião de Charlie Brooker, o criador de “Black Mirror”, e de Ally Pankiw, a diretora do primeiro episódio da sexta temporada da série, queridinha de dez em dez nerds, não necessariamente pela forma, mas decerto pelo conteúdo. Em “A Joan é Péssima”, a protagonista, uma mulher tão comum quanto perversa, mesquinha, patologicamente sincera e, esticando-se um tanto a corda, inclinada a um racismo que, por um triz, não a domina, vê-se ela mesma em palpos de aranha no momento em que sua vida — ou o que imagina que seja sua vida — para, sem a sua licença, no catálogo de uma gigante do entretenimento por streaming, uma certa Streamberry, cujas cores, logomarca, leiaute e aquele sinal sonoro bastante característico, que indica que a plataforma aquiesce quanto a livrar o espectador do tédio de uma rotina assustadoramente banal, assemelha-se muito ao da Netflix, produtora e distribuidora do programa. Nunca serão demais críticas a um mecanismo que, mais cedo ou mais tarde (e, pelo visto, será muito mais cedo do que se pensa), reduzirá seres humanos a meros coadjuvantes de sua história, inventado e gostosamente desenvolvido por outros seres humanos — quanto a isso nenhuma surpresa: homo sapiens sapiens tornamo-nos peritos em devorar-nos uns aos outros desde que o mundo é mundo, e continuamos abrindo caixas de Pandora para muito além do tropo da mitologia grega antiga —, mas o ponto no texto de Brooker é a solução que o showrunner vislumbra para uma questão que, sem exagero, tem tudo para deflagrar a Terceira Guerra Mundial, com ogivas nucleares saltando de Pyongyang para Teerã, de Teerã para Istambul, de Istambul para Washington, de Washington para Marte, até, finalmente, voltemos todos à condição de poeira cósmica de onde surgimos, num buraco negro a centenas de milhões de anos-luz daqui. Estou sendo redundante em meu catastrofismo, eu sei. É que esse texto não foi redigido com o ChatGPT.

A Joan é péssima e polivalente. Antes de sair para trabalhar, Joan, a mocinha mais politicamente incorreta já criada pelo homem, escuta o toque do despertador por alguns segundos antes de se levantar para só então pular da cama, escovar os dentes com a pasta de uma marca específica e tomar café. Ninguém pode dizer que a mulher que anda pela casa luxuosa vestindo uma camiseta larga onde se lê “Surfe ou morra” é a executiva de sucesso que toca uma startup de tecnologia, uma ponte entre a diretoria “lá nas nuvens” e a equipe abaixo de si. Annie Murphy voa em céu de brigadeiro na elaboração das dicotomias de sua personagem, sempre raspando no sadismo — como na cena em que demite Sandy, de Ayo Edebiri, a subalterna negra que serve-lhe um café com gosto de “cocô de cachorro”, destacando que ela não tem culpa da garota ter acabado de dar entrada num apartamento novo —, e, ao mesmo tempo, frágil, talvez pressentindo que, se algo parecido lhe acontecesse, não inspirara a comiseração de quem quer que seja. Poucos depois, ela tem a oportunidade de ratificar suas suspeitas, e tudo quanto dizia sobre os desajustes no casamento com Krish, o marido sereno e excessivamente cartesiano interpretado por Avi Nash; a paixão pelo ex, Mac, vivido por Rob Delaney; e, claro, a defenestração torpe da personagem de Edebiri passam a ser tema das conversas miúdas nos corredores das empresas e nas salas de estar do mundo inteiro, publicizadas por Salma Hayek no que retorno gradual ao batente mais metódico, trabalho de fina carpintaria que se junta ao carisma magnético de Murphy.

Na virada do segundo para o terceiro ato do enredo disposto em precisos 58 minutos, onde todas as subtramas têm a justa extensão que devem ter, Brooker saca da manga um expediente habilidoso para destrinchar a lógica que aprisiona Joan e Hayek na espiral de um mistério bem-humorado para o público e sem dúvida aterrador para elas, tudo na conta de um tal quomputador, nomezinho famigerado para denominar uma máquina quântica que manipula a vida como ela é valendo-se das informações que captura dos algoritmos, essa entidade que cerca-nos a todos inclementemente. O fecho da trama central não poderia ser mais adequado, com Hayek, a “Joan da tevê” rompendo o ciclo num figurino à “Kill Bill”, e lembrando-nos de nossa vã humanidade. Ainda é tempo.


Episódio: A Joan é Péssima
Série: Black Mirror
Direção: Ally Pankiw
Ano: 2023
Gêneros: Ficção científica/Comédia
Nota: 9/10