Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. Começar de novo, num país como o Brasil, é quase uma imposição biológica: consta do DNA do brasileiro a necessidade a adaptar-se a cenários os mais diversos — e adversos, sobretudo os adversos —, e filmes como “2 Coelhos” atestam que, uma, duas, três décadas não são o bastante para que possamos juntar os cacos da dignidade perdida e ordenar nossa história mais uma vez, sempre a reboque das decisões de gente que deveria ter por princípio de origem sacrificar sua vida em favor do bem, se necessário, mas uma vez assunta às esferas que o pagador de impostos sustenta, mas sequer entende, não larga mais o osso e está sempre atento para oportunidades de abocanhar mais um naco. Afonso Poyart irriga seu trabalho com essa gana do homem por efervescências no seio da comunidade de que faz parte, note-o ou não, depositando o que parecem esperanças um tanto românticas, quase vãs, num personagem a um só tempo marginal e herói, revolucionário por natureza, indignado por vocação, lutando contra seu próprio desajuste, que sabe dever-se em grande medida ao meio em que está inserido, ao passo que engendra as mudanças cujo alcance mais vasto julga essencial para fazer da utopia, realidade. O problema é que ele é o único a sonhar.
Edgar sonhou ser muita coisa: médico, astronauta, mergulhador, mas acabou mesmo incorporando-se ao sistema, graças ao excepcional talento para criar peças de publicidade, junto com a aptidão tecnológica. Essas suas duas habilidades hão de definir sua sorte ao longo dos 108 minutos pelos se estende o roteiro de Poyart, enfraquecido por brincadeirinhas gráficas nos cenários e sobre os corpos dos atores, sobretudo o do protagonista Fernando Alves Pinto, cuja nudez na primeira sequência é coberta por uma folha de parreira rabiscada grosseiramente enquanto se veste. A linguagem artificialmente jovem, quando “2 Coelhos” tem potencial de chegar a públicos de qualquer faixa etária, é decerto um maneirismo que elanguesce a trama, mas Pinto, ator de desempenhos muito irregulares, a despeito da prolífica filmografia, segura a antinomia de seu antimocinho, um burguês meio ridículo cuja saúde mental definha a olhos vistos diante da obrigação de superar metas, cumprir horários, honrar contratos, ser adulto, enfim. Quiçá sua imaturidade o impele a largar tudo e apostar todas as fichas num projeto subversivamente inovador, um dispositivo que usa a corrente elétrica de maneira muito peculiar e, usado do jeito que pretende, teria uma função, digamos, saneadora. Dessa ficção científica velada, o diretor-roteirista avança para a sátira político-cultural, mirando Jader Kerteis, o candidato a deputado estadual pelo Bem te Vi — sem dúvida, um ótimo nome para partidos políticos — eleito pelo voto na legenda graças a um sósia do comediante Zacarias, dos Trapalhões, este, sim, alvo certo da preferência do eleitor. A clara referência ao pleito de 2010, quando o palhaço Tiririca passou a também atender como Sua Excelência Francisco Everardo Oliveira Silva, levando consigo para Brasília gatos-pingados e algumas velhas raposas, incumbe-se de dar ao enredo um sabor acre de farsa e tragédia.
No último terço, quando a narrativa de fato tem o condão de fomentar a análise de por que Edgar tornou-se quem é — o que, automaticamente, conduz o espectador de novo à introdução —, Poyart liga o personagem central, até então um suspeito profeta do caos, ao deputado Kerteis de Roberto Marchese, oscilando a tensão com a sempre bem-vinda participação de Alessandra Negrini como Júlia. Mas o amor também não é para ele.
Filme: 2 Coelhos
Direção: Afonso Poyart
Ano: 2012
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10