Indicado a 8 Oscars, filme na Netflix vai sacudir seu cérebro por semanas, ou até mesmo meses, após assisti-lo Divulgação / Miramax Films

Indicado a 8 Oscars, filme na Netflix vai sacudir seu cérebro por semanas, ou até mesmo meses, após assisti-lo

Um homem desce às profundezas da terra armado de uma picareta, abrindo sulcos cada vez mais amplos em busca de alguma coisa para chamar de sua, de verdadeiramente sua. À medida que bate, mais sente vontade de bater, e o atrito da ferramenta na pedra dá a impressão de que chove-lhe ouro por cima, quando, na verdade, só o que recebe de volta são as fagulhas de suas ilusões mais inconfessáveis. Daniel Plainview, o eixo em torno do qual “Sangue Negro” gira caoticamente, ao contrário das metódicas sondas de petróleo do Texas, é a segunda das três primorosas composições de Daniel Day-Lewis que botaram-lhe no currículo o metal mais nobre em sua apresentação mais sofisticada. Vencedor do Oscar de Melhor Ator pelo papel, em 2008 — as outras premiações na categoria foram em 1990, por “Meu Pé Esquerdo” (1989), dirigido por Jim Sheridan; e em 2013, quando deu vida a Abraham Lincoln (1809-1865) na cinebiografia de Steven Spielberg, levada à tela no ano anterior —, Day-Lewis é, sem nenhum demérito a “Petróleo!” (1927), o romance do americano Upton Sinclair (1878-1968) em que Paul Thomas Anderson vagamente se baseia, a grande atração do filme.

É necessário toda a calma do mundo a fim de se absorver a pletora de tropos de Sinclair, que, venturosamente, a fotografia de Robert Elswit — mais um Oscar para a conta de “Sangue Negro” — e os cenários de Jack Fisk conseguem mudar em imagens que ficam à roda do pensamento até muito depois de findas as mais de duas horas e meia de projeção. Este decerto é um dos filmes que mais despertou arengas e inspirou palpites acerca da fidelidade da adaptação mesma de “Petróleo!” pelo diretor-roteirista, desastrosa na visão de uns, irreprochável para outros, ambos os grupos apaixonadamente equivocados. Talvez a confusão possa ser atribuída às datas, o que não deixa de constituir-se uma prova da invencível ranzinzice dos fãs — neste caso, do escritor. As imagens descritas no princípio deste artigo tomaram forma em 1898; só ao termo de quatro anos, em 1902, Plainview se convence de que está malhando ferro frio, que suas jazidas de prata no Meio-oeste americano já deram o que poderiam ter dado e se determina a ser um dos primeiros extratores independentes de petróleo, o sangue negro do título. Certo, a narrativa de Anderson é um tanto frenética, mas o diretor contrabalança a psicopatia de um louco que vai liberando sua completa inadequação ao mundo de um jeito quase desculpável e naturalmente compreensível indo e vindo no perfil de ganância, agressividade, violência de um sujeito que tenta de qualquer maneira não ceder à força invencível das circunstâncias. Amálgama do super-homem nietzschiano com a impossibilidade concreta de ser feliz, não apenas dele, mas do gênero humano mesmo, descrita por Arthur Schopenhauer (1788-1860), Plainview é alguém que, até o começo de uma velhice solitária (estamos no início do século passado), já lidara com toda a sorte de desdita e vencera, mas o inesperado da vida apresenta-lhe suas novas surpresas, alheio a suas pré-históricas rugas e suas cãs ainda incipientes. Para ele, ninguém gosta de ninguém: as pessoas têm é interesses em comum. Sua obstinação patológica em achar petróleo é o que de mais ingênuo e mais saboroso no filme; são as novas propriedades, as apólices de seguro, os carros luxuosos que sua inaudita nova fonte de renda lhe trazem que o corrompem e mantêm seu distanciamento de quem quer que seja, inclusive de H. W., o filho adotivo interpretado por Dillon Freasier, vítima de seus achaques sem nunca se permitir abater, certo de que o pai o enxerga como mero enfeite, o atestado de bondade que exigem-lhe as débeis instituições do lugarejo, e, em assim sendo, ainda mais convicto de Plainview é quem precisa dele. No momento em que a trama vira a chave para a análise sociológica em sentido estrito, Paul Dano, na pele de Paul e Eli, gêmeos univitelinos sobre cujas figuras Anderson faz pairar um mistério estimulante, personifica a outra camada de perversão de que trata a narrativa de Sinclair. Eli, um jovem e aguerrido pastor que se dedica a fundar uma tal Igreja da Terceira Revelação, fia-se na solidariedade cristã e na munificência pragmática de homem de negócios de Plainview, e uma vez que é iludido, nasce o ódio que sustenta o longa até o desfecho acachapantemente bárbaro.

As inúmeras metáforas de “Sangue Negro”, a começar por esta, a mais lógica, expressa no nome do filme, é uma história que alonga-se em outras muitas, centrando fogo mesmo na desordem mental de um homem que se fragmenta, não se sabe se contagiado pelo meio em que está ou por suas orgânicas inconsistências. A única aspiração de Plainview é ser um milionário, sonho que sua rara capacidade de empreender faculta-lhe. Em dada altura de “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles (1915-1985) — este, sim, perfeito —, alguém diz que só é fácil se ganhar muito dinheiro quando não se faz na vida outra coisa senão pensar em se ganhar muito dinheiro. Xeque-mate para Daniel Plainview.


Filme: Sangue Negro
Direção: Paul Thomas Anderson
Ano: 2007
Gêneros: Drama/Épico
Nota: 9/10