Além de fonte de boa diversão, o cinema pode servir de abrigo para relações clandestinas. Essa é uma das boas metáforas de “As Duas Irenes”, um drama eminentemente rural em que o goiano Fabio Meira destrincha a pequena tragédia que pode se abater sobre a vida de qualquer um. Nota-se na produção de Meira uma certa obsessão em acessar meandros pouco evidentes do universo infantil, escolhendo os caminhos por onde pode deslizar com mais graça, até atingir, finalmente ao coração da história, habilidade que muitos passam a vida tentando burilar. Aqui, o diretor-roteirista salta de uma história para a outra, dando ao enredo a ideia de complementaridade, ou seja, precisa-se tomar o filme do ponto de vista de uma novela, disposta em capítulos bem segmentados que apontam ora numa direção, ora na oposta, mantendo-se, por óbvio, a coerência do todo.
Logo na primeira sequência, o texto de Meira já começa a aproximar-se de seu objeto principal, a solidão de uma garota que deveria sentir-se a mais afortunada das criaturas, especialmente num lugar de tantas limitações como é o vilarejo onde nasce e vai se tornando gente. Priscila Bittencourt, a primeira Irene, está como que congelada no tempo, baratinada diante de uma rua de pouco movimento da zona rural de Goiás, a antiga capital do estado, e tudo quanto consegue fazer na intenção de sair de seu torpor é lançar calhaus na janela da casa em frente. Bittencourt domina sua personagem com folga, acabando com qualquer dúvida a respeito da inadequação fundamental da moça, a segunda de três filhas de Tonico e Mirinha, vividos por Marco Ricca e Susana Ribeiro. Ter passado a vida sempre numa desconfortável zona cinzenta, nem tão mimada quanto Cora, a caçula, papel de Ana Reston, nem na mira dos pais como a primogênita Solange, de Maju Souza, é o estímulo de que Irene se alimenta para obedecer à determinação mais secreta de sua alma precocemente atormentada, munida de uma convicção que não se atreve a partilhar com ninguém.
Meira elabora o segundo ato, momento em que a narrativa revela, afinal, para onde quer seguir, colocando Irene diante da menina com quem divide o nome, e nesse particular, o diretor saca de uma ideia pouco original, mas convincente, a fim de não jogar fora a chance de presentear a audiência com um inaudito suspense, que cai como uma luva num enredo quase melodramático. Para chegar à solução do enigma que a aflige, Irene vira Madalena, como também se chama a babá interpretada por Teuda Bara, espécie de entidade vinda diretamente do Brasil escravocrata, sobrevivente dos pelourinhos do coração do Brasil, mas que segue amargando uma servidão edulcorada por laços mais ou menos afetuosos. A outra Irene, composição feliz da excelente Isabela Torres, é a filha única da costureira Neuza, de Inês Peixoto, cujo pai conhece muito bem.
Desse momento até o encerramento, misterioso, como se o filme se enterrasse sob o chão vermelho do cerrado ao menor sinal de bulício, Irene e a falsa Madalena trocam de lugar em várias ocasiões, uma trilhando os descaminhos da outra, num perturbador exercício cênico que Meira conduz à perfeição, fomentando no público, uma vez mais, a memória de Tolstói sobre famílias e a perdição oculta que as cerca. Ser criança pode ser bom, mas não quando se é sensível como uma Irene (ou duas).
Filme: As Duas Irenes
Direção: Fabio Meira
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 8/10